Sarney: arcabouço totalitário e democratização
Vitor Amorim de Angelo*
Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
Em meio à grande comoção nacional provocada pela morte do recém-eleito Tancredo Neves, alguns setores mais à esquerda defenderam a realização de novas eleições, alegando que o vice-presidente José Sarney, por tudo aquilo que representava, não poderia ser o primeiro presidente da Nova República. Na época, diante das críticas à confirmação de seu nome como presidente, Sarney comprometeu-se com a transição democrática e com os acordos firmados por Tancredo - sem contar a nomeação dos ministros escolhidos pelo presidente eleito.
Muitos nomes do ministério de Sarney eram ligados à ditadura militar e haviam chegado ao poder por uma convergência de interesses e circunstâncias específicas, como a divisão interna do PDS, a formação da Frente Liberal, a aliança com o PMDB, a vitória de Tancredo e, por fim, a posse de Sarney.
Jorge Bornhausen, da Educação, Antonio Carlos Magalhães, das Comunicações, e Aureliano Chaves, das Minas e Energia, nomes conhecidos até hoje, talvez representassem a contradiação mais evidente entre a fase que começava, e que se pretendia nova, e o regime que terminava.
Arcabouço totalitário
Sarney também se recusou a acabar com o chamado arcabouço autoritário, como eram conhecidos os dispositivos legais remanescentes da ditadura militar. Foi baseado nesses dispositivos que seu governo reprimiu duramente algumas das mobilizações sociais da época, especialmente os movimentos grevistas.
Fatos como a invasão da Companhia Siderúrgica Nacional pelo Exército e a morte de três jovens trabalhadores da fábrica por golpes de baionetas marcariam a relação entre o governo e os trabalhadores, duramente atingidos pela recessão econômica dos anos 1980.
Politicamente, Sarney estabeleceu uma relação com os deputados e senadores - transformados em parlamentares constituintes - acima dos próprios partidos. Essa relação fundamentou-se na nomeação para determinados cargos, concessão de emissoras de rádio e TV e liberação de verbas para obras, por parte do presidente, e no apoio aos projetos pessoais de Sarney, por parte dos parlamentares - que logo formariam um grupo dentro do Congresso Nacional conhecido como Centrão.
O mais polêmico desses projetos foi a extensão do mandato presidencial para cinco anos, em vez de quatro, como havia sido firmado no acordo de criação da Aliança Democrática.
Corrupção e alianças conservadoras
Durante seu governo, Sarney também enfrentou várias denúncias de corrupção, inclusive contra ele mesmo. Um dos casos mais notórios foi o da construção da Ferrovia Norte-Sul, que ligaria o Maranhão, estado do presidente, a Brasília.
Em 1988, a CPI criada para apurar as denúncias de corrupção acusou o próprio Sarney pelo desvio de verbas públicas. Entretanto, as denúncias não foram levadas adiante e o presidente conseguiu cumprir o mandato até o fim, a despeito do seu conturbado governo.
De fato, a Nova República começou velha. Afinal, tanto Tancredo quanto Sarney eram bem próximos aos militares, ainda que em níveis diferentes. A forma como se desdobrou a campanha pelas Diretas, através da eleição indireta para presidente e do estabelecimento de uma aliança entre setores conservadores e políticos de direita ligados ao regime que se encerrava reforçaram essa faceta da Nova República.
Seu primeiro presidente foi um importante aliado da ditadura que o novo período suplantou. O temor de que o governo Sarney representasse um retrocesso para a democratização brasileira, contudo, acabou não se confirmando. Por outro lado, seu governo reeditou, ou pelo menos manteve inalteradas, as velhas práticas da política brasileira, além de ter sido um abrigo para os nomes fortes da ditadura. Apesar disso, passados mais de 20 anos desde a sua posse, a Nova República já é a nossa mais longa experiência democrática.
*Vitor Amorim de Angelo é historiador, mestre e doutorando em ciências sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente, é professor de história da Universidade Federal de Uberlândia.
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