13 de junho de 2017

AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CONTEXTO HISTÓRICO


Por Nadir F. Costa e Silva



A história aponta diferentes aspectos sobre o indivíduo com deficiência, passando pela rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção assistencialista e piedosa, de outro. O conceito tem uma relação estreita com as concepções sociais, políticas, econômicas e ideais que nortearam cada período da história. Esse artigo pretende realizar um breve resgate do conceito de deficiência intelectual nos diferentes períodos da história até os dias atuais. Conhecer essa construção histórica possibilita compreender mais acerca da deficiência, o que propicia maior clareza sobre o conceito e consequentemente sobre a implementação de serviços de atendimento a esta parcela da população, assim como de projetos de pesquisa na área. Além do que, não deixa de ser interessante acompanhar o percurso histórico das pessoas com deficiência ao longo do tempo, no a fim de observar mudanças na percepção social relativa a este grupo populacional.

A Deficiência Intelectual no Contexto Histórico
            Inúmeras são as publicações a respeito de pessoas em condição de deficiência. Durante séculos, os “diferentes” ficaram à margem da sociedade, todavia, na medida em que o direito do homem à igualdade e a cidadania tornou-se motivo de preocupação, a percepção em relação à pessoa com deficiência começou a mudar. A rejeição cedeu lugar a atitudes de proteção e filantropia que até hoje predomina, apesar dos esforços do movimento das pessoas com deficiência e seus apoiadores para que essa postura seja substituída pelo reconhecimento da igualdade de direitos e acessos.
            Na atualidade, o documento mais importante que trata dos interesses das pessoas com deficiência é a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A Convenção discorre sobre os direitos das pessoas com deficiência e, em seu primeiro artigo, traz a definição de pessoa com deficiência: sendo aquela que tem impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. Sobre a educação, a Convenção advoga um sistema inclusivo em todos os níveis, sendo a educação inclusiva o conjunto de princípios e procedimentos implementados pelos sistemas de ensino para adequar a realidade das escolas à do aluno e dessa forma representar a diversidade humana. Assim, um dos objetivos desse modelo é a participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre, o que exige a construção de escolas capazes de garantir o desenvolvimento integral de todos os alunos, sem exceção.
            No século XVIII a deficiência, ainda era confundida com doença mental e tratada pela medicina que atendiam às necessidades sociais e se caracterizava pela retirada dessas pessoas de suas casas, mantendo-as em instituições situadas em locais longe de suas famílias, sendo isoladas do resto da sociedade, fosse a título de proteção, de tratamento, ou de processo educacional (Aranha, 2001). A partir do século XIX, passou-se a levar em conta as capacidades intelectuais das pessoas que apresentavam algum tipo de deficiência e, aos poucos, pesquisadores, envolveram-se com a questão e realizaram as primeiras intervenções educacionais.
            Mas, apenas na década de 1960, é proposto um paradigma sustentado na integração das pessoas com deficiência. O paradigma de serviços, como passou a ser denominado (Aranha, 2001), seguia a filosofia da normalização, sendo a integração uma forma de preparação dos alunos com deficiência para sua adaptação ao ensino regular. O problema continuava centrado no aluno e no ensino especial, uma vez que a escola regular educava apenas aqueles com condições de acompanhar as atividades, sem preocupação com as necessidades individuais. Esse paradigma logo no início enfrentou críticas, pois a maioria dos alunos com deficiência continuava segregada em escolas ou classes especiais por não apresentar condições de ingresso nas turmas regulares (Bueno, 2001).
            Na década de 1980 ganha força um novo paradigma, caracterizado pelo pressuposto de que a pessoa com deficiência tem direito à convivência não discriminada e acesso aos recursos disponíveis aos demais cidadãos. A proposta da educação inclusiva continua norteando o processo, mas o novo paradigma baseia-se na inclusão, a qual defende que esses alunos, independentemente do tipo de deficiência ou grau de comprometimento, devem ser absorvidos no ensino regular, ficando a escola com a responsabilidade de se reestruturar para poder atendê-los. Dessa forma, crianças e adolescentes com deficiência passam a ser matriculados no ensino regular, tornando-se possível o acesso e permanência de todos os alunos por meio de uma transformação da escola (Aranha, 2001).
            No decorrer de todo esse processo, a circunstância que hoje conhecemos por deficiência intelectual foi estigmatizado ao longo da história por conceituações diversas, incluindo: idiota, imbecil, débil mental, oligofrênico, excepcional, retardado, deficiente mental, entre outros. Atualmente, o conceito de deficiência intelectual mais divulgado nos meios educacionais tem como base o sistema de classificação da Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimento – AAIDD. Segundo essa definição, a deficiência intelectual é entendida como uma condição caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual, quanto no comportamento adaptativo.
            Enfim a deficiência intelectual não é um transtorno médico, nem um transtorno mental, ainda que possa ser codificada em uma classificação médica das doenças. Diz respeito a um estado particular de funcionamento que começa na infância, é multidimensional e é afetado positivamente pelos apoios individualizados[1] (AAMR, 2006).
            Esse artigo pretende relatar brevemente ao longo da história sobre a deficiência intelectual, fazendo também descrições enfoque educacional no decorrer dos séculos. Ter noção sobre essa construção histórica é possível compreender mais a respeito da deficiência intelectual, o que proporciona clareza sobre o conceito e, consequentemente, sobre a implementação de serviços de atendimento para essa parcela da população, assim como projetos de pesquisa na área.

Precedentes Históricos

            As pessoas com deficiência, via de regra, receberam dois tipos de tratamento quando se observa a História Antiga e Medieval: por um lado a rejeição e eliminação sumária, e a proteção assistencialista e piedosa, de outro. Contudo ainda hoje, encontramos práticas segregacionistas, principalmente em países em desenvolvimento.
            No artigo intitulado “Pessoa com deficiência e sua relação com a história da humanidade”, Maria Aparecida Gugel (2008) aponta como as pessoas com deficiências foi tratada ao longo dos séculos. De acordo com a autora não se têm indícios de como os primeiros grupos de humanos se portavam em relação às pessoas com deficiência. Até porque, não haviam abrigos para as intempéries do clima, assim provavelmente essas pessoas não sobreviviam ao ambiente hostil da época.
            Gugel (2008, p. 46) informa ainda que, entre os povos primitivos, havia uma diferenciação no tratamento destinado às pessoas com deficiências, uma vez que alguns os exterminavam por considerá-los como empecilho à subsistência do grupo, no entanto outros, os protegiam e sustentavam para buscar a simpatia dos deuses.
            A partir de 2.500 a.C., no Egito Antigo, há indícios mais seguros quanto as formas de sobrevivência de indivíduos com deficiência. Dentre os povos da História Antiga, os egípcios são aqueles cujos registros são mais remotos. Os remanescentes das múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam-nos indícios muito claros não só da antiguidade de alguns “males incapacitantes”, como também das diferentes formas de tratamento que possibilitaram a vida de indivíduos com algum grau de limitação física, intelectual ou sensorial.
            Silva (1987) menciona, por exemplo, a Escola de Anatomia da cidade de Alexandria. Dela ficaram registros da medicina egípcia utilizada para o tratamento de males que afetavam os ossos e os olhos das pessoas adultas. Existem ainda referência aos cegos do Egito e ao seu trabalho em atividades artesanais. As famosas múmias do Egito, que permitiam a conservação dos corpos, possibilitaram o estudo dos restos mortais de faraós e nobres do Egito que apresentavam anomalias e limitações físicas, como Sipthah (séc. XIII a.C.) e Amon (séc. XI a.C.).
            Na sociedade hebraica, a deficiência física ou sensorial, era considerada como uma forma de punição de Deus, e a qualquer portador de deficiência era negado o acesso a serviços religiosos. Na Roma Antiga, tanto os nobres como os plebeus tinham permissão para sacrificar os filhos que nasciam com algum tipo de deficiência. Mas havia uma alternativa para os pais: deixar as crianças nas margens dos rios ou locais sagrados, onde eventualmente pudessem ser acolhidas por famílias da plebe (escravos ou pessoas empobrecidas). A utilização comercial de pessoas com deficiência para fins de prostituição ou entretenimento manifesta-se, talvez pela primeira vez, na Roma Antiga. Segundo o Silva (1987): “cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidos com má formação eram também, ligados a casas comerciais, tavernas e bordéis; bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes” (Silva, 1987, p. 130). Tragicamente, esta prática repetiu-se várias vezes na história, não só em Roma.
            Em Esparta as crianças deficientes ou aquelas que adquiriam alguma deficiência eram lançados ao mar ou em abismos. Tal conduta “justificava-se” para o bem da própria criança e para a sobrevivência da república, onde a maioria dos cidadãos deveria se tornar guerreiros.
            Seguindo o mesmo posicionamento, os espartanos também não eram favoráveis às pessoas com deficiência, pois:
Como os gregos se dedicavam à arte da guerra e preocupavam-se com as fronteiras de seus territórios e invasões bárbaras, só os fortes sobreviviam para servir ao exército. Os nascidos com deficiência eram eliminados, e a eliminação se dava por aborto, por exposição ou abandono ou, ainda, eram atiradas do aprisco de uma cadeia de montanhas chamada Taygetos, na Grécia. (Almeida e Costa 2013, p. 109).

            No entanto, em Atenas, influenciados por Aristóteles – que definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça” – os deficientes eram amparados e protegidos pela sociedade. De acordo com Séguin (1999, p. 109) Aristóteles não concordava coma a obsessão contra pessoas com deficiência e dizia ser mais fácil ensinar um aleijado a exercer uma tarefa útil do que sustentá-lo como indigente. A exemplo disso é o mitológico Hefesto, que na obra Ilíada de Homero, que era deficiente, no entanto detinha grande habilidade em metalurgia e nas artes marciais.
            Para os hindus, os cegos, eram considerados pessoas de sensibilidade interior mais aguçada, justamente pela falta da visão, e incentivavam o ingresso dos deficientes visuais nas colocações religiosas (Gugel, 2008).
            O advento do Cristianismo significou, em diferentes aspectos, uma mudança na forma pela qual as pessoas com deficiência eram vistas e tratadas pela sociedade em geral. Num momento em que o Império Romano estava com seu poderio militar e geopolítico consolidado, o lastimável estado de moral da sociedade romana, especialmente da nobreza, que demonstrava total despreocupação com a proliferação de doenças e o crescimento da pobreza e da miserabilidade dentre boa parte da população.
            Nesse contexto, vai ganhando força o conteúdo da doutrina cristã, voltado para a caridade, humildade, amor ao próximo. Estes princípios encontraram respaldo na vida de uma população marginalizada e desfavorecida, A influência cristã e seus princípios contribuíram, a partir do século IV, para a criação de hospitais voltados para o atendimento dos pobres e marginalizados, dentre os quais indivíduos com algum tipo de deficiência. No século seguinte, foram criadas instituições de caridade e auxílio em diferentes regiões, como o hospital para pobres e incapazes na cidade de Lyon, construído pelo rei franco Childebert no ano de 542 (Silva, 1987).
            O período conhecido como Idade Média, entre os séculos V e XV, traz algumas informações e registros (preocupantes) sobre pessoas com deficiência. Continuaram a existir, na maioria das vezes controlados e mantidos por senhores feudais, locais para o atendimento de doentes e deficientes. Os relatos históricos enfatizam, que os surdos não teriam acesso à salvação, pois de acordo com Paulo, na epístola aos Romanos, a fé provinha do ouvir a palavra de Cristo” (Ribeiro, 2007, p. 248). Nesse período, “o nascimento das pessoas com deficiência era visto como um castigo de Deus. Eram vistas por muitos como feiticeiras ou bruxas, e, muitas dessas crianças eram motivos de escarnio, servindo de diversão” (Almeida e Costa, 2013, p. 109). Para Mazzotta (2005, p.16) a própria religião, ao colocar o homem como “imagem e semelhança de Deus”, um ser perfeito, incluindo-se aí a perfeição física e mental. E, não sendo “parecidos com Deus”, essas pessoas eram postas à margem da condição humana, e tidas como culpadas de sua própria deficiência.
            Com a decadência do feudalismo, os portadores de deficiência deveriam ser envolvidos no sistema de produção, ou assistidos pela sociedade, que contribuía compulsoriamente para tanto.
            Em 1547, na França, O rei Henrique II, instituiu a assistência social obrigatória para proteger os deficientes, através de impostos. Gugel (2008). Porém foi com no advir do Renascimento que se iniciou uma postura profissionalizante e integrativa das pessoas portadoras de deficiência. A visão científica e humanista desse período derrubou o estigma social que influenciava o tratamento para com as pessoas portadoras de deficiência e a busca racional da sua integração se fez por várias leis que passaram a ser promulgadas. Nesse novo contexto e, pela primeira vez, uma autoridade da medicina, Phhilipus Aureolus Paracelsus, considera ser de natureza médica um problema que até então fora situado dentro da religião e da moral (Pessotti, 1984). Foi também nesse período que surgiu o primeiro hospital psiquiátrico, que assim como os asilos e conventos, também servia para enclausurar pessoas que apresentavam comportamentos fora do padrão da sociedade (Aranha, 1995; 2001).
            No século XVII, a educação, passou a ser oferecida também pelo Estado, com objetivos claros de preparo da mão de obra que se mostrava necessária no novo modo de produção. Nesse período, novas ideias foram sendo produzidas, tanto na área da medicina na educação. Em relação à deficiência, continuou predominando a postura organicista, voltada para a busca da identificação de causas ambientais (Pessotti, 1984).
            No Brasil, há também relatos de crianças com deficiência que eram “abandonadas em lugares assediados por bichos que muitas vezes as mutilavam ou matavam”. (Jannuzzi, 2004, p.9). Em 1726, foram criadas as chamadas rodas de expostos onde as crianças eram colocadas e dessa forma as religiosas que as recolhiam lhes proporcionavam alimentação, educação e todos os cuidados que necessitassem.
            Na Idade Moderna, a partir de 1789, surgiram vários inventos que propiciaram meios de trabalho e locomoção aos portadores de deficiência, tais como a cadeira de rodas, bengalas, bastões, muletas, coletes, próteses, macas, veículos adaptados, camas móveis, etc.; o Código Braille foi criado por Louis Braille e permitiu a perfeita integração dos deficientes visuais ao mundo da linguagem escrita, e é utilizado até os dias atuais. Nessa mesma época, o filósofo John Locke passa a defender que o homem é uma “tabula rasa” a ser preenchida pela experiência. O deficiente pode ser tratado ou educado e tem direito a isso, entretanto não há vantagens para o poder público e para a família em assumir essa responsabilidade. Inútil para a lavoura e para o artesanato, e consumidor improdutivo, o deficiente não tem outro destino além do asilo (Pessotti, 1984).
            Em relação ao tratamento médico, Esquirol é o principal representante da área nesse período. Para Esquirol a idiotia não era uma doença, mas um estado em que as faculdades intelectuais nunca se manifestaram, ou não puderam se desenvolverem suficientemente para que os conhecimentos relativos à educação fossem adquiridos. Também defendia a impossibilidade de alterar esse estado (Pessotti, 1984).
            Até o século XVIII, a própria ciência confundia deficiência mental com doença. Nesse século a deficiência mental continuava sendo considerada hereditária e incurável e, por isso, a maioria das pessoas que apresentava essa especificidade, era abandonada em hospícios ou asilos.
            Almeida e Costa (2013, p. 109) destacam que o despertar da atenção para a questão da habilitação e da reabilitação do portador de deficiência para o trabalho aguçou-se em 1884 com o Chanceler alemão Otto Von Bismark e Napoleão Bonaparte, ao ser determinado que os ex-soldados feridos ainda eram úteis e poderiam servir o exército em outras funções. Além do mais, a partir da Revolução Industrial, quando as guerras, epidemias e anomalias genéticas deixaram de ser as causas únicas das deficiências, e o trabalho, em condições precárias, passou a ocasionar os acidentes mutiladores e as doenças profissionais. Assim, tornou-se necessário a criação de um sistema de seguridade social mais eficiente, bem como a reabilitação dos acidentados (Gugel, 2008).

Séculos XIX e XX: Novos Paradigmas de Serviços

            Somente no século XIX, com o trabalho do médico Jean Itard, considerado o primeiro teórico de Educação Especial, as pessoas com deficiência intelectual passaram a ser consideradas passíveis de serem educadas. O primeiro desafio para Itard foi o trabalho com o menino Victor de Aveyron, diagnosticado pelo psiquiatra francês Philippe Pinel como sendo um idiota, sem esperança alguma de possibilidades de educação. Aí foi concebido o primeiro tratamento para deficientes, como aborda Jannuzzi (2004).
            Outra importante contribuição foi a de Édouard Séguin, discípulo de Itard, o primeiro a propor uma teoria psicogenética da deficiência intelectual e a criticar a visão médica de incurabilidade. Seu método consistia em estimular o cérebro por meio de atividades físicas e sensoriais, tendo seu trabalho influenciado por Pestalozzi, Fröebel e Montessori, cujos estudos e atividades eram dirigidos para a educação de pessoas com deficiência intelectual. Séguin criou em 1837 a primeira escola para deficientes intelectuais. Foi o primeiro presidente de uma organização de pesquisa dirigida a estudos sobre a deficiência, fundada em 1876, a Associação Americana de Retardo Mental [AAMR], atualmente conhecida como Associação Americana de Deficiência Intelectual e Desenvolvimento [AAIDD] (Miranda, 2003; Pletsch, 2009).
            No século XIX é consolidada a prática do cuidado institucional para pessoas com deficiência, mas essas instituições, logo se transformaram em ambientes segregados, constituindo o primeiro paradigma formal adotado na caracterização da relação sociedade deficiência: o Paradigma da Institucionalização. Este paradigma caracterizou-se pela retirada das pessoas com deficiência de suas comunidades de origem e pela manutenção delas em instituições. Mas, ficavam isoladas do resto da sociedade, fosse a título de proteção, de tratamento, ou de processo educacional (Aranha, 2001).
            No Brasil O atendimento escolar especial para os indivíduos com deficiência teve início, com a criação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos (atualmente Instituto Benjamin Constant) pelo Imperador Dom Pedro II (1840-1889) por meio do Decreto Imperial no 1.428, de 12 de setembro de 1854. Três anos depois, em 26 de setembro de 1857, o Imperador, funda o Imperial Instituto de Surdos-Mudos (atualmente Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES). Esse Instituto passou a atender indivíduos surdos de todo o país, a maioria abandonada pelas famílias.
            No início do século XX é fundado o Instituto Pestalozzi (1926), instituição especializada no atendimento às pessoas com deficiência mental; em 1954, é fundada a primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE; e, em 1945, é criado o primeiro atendimento educacional especializado às pessoas com superdotação na Sociedade Pestalozzi, por Helena Antipoff.
            Mais recentemente, citamos a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala – 1999) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, das Nações Unidas.
            No século XX a assistência e a qualidade do tratamento dado não só para pessoas com deficiência como para população em geral tiveram um essencial avanço. No caso das pessoas com deficiência, o contato direto com elevados contingentes de indivíduos com sequelas de guerra exigiu uma série de medidas. A atenção às crianças com deficiência também aumentou, com o desenvolvimento de especialidades e programas de reabilitação específicos.
            No período entre Guerras, na Grã-Bretanha, na França e também nos EUA houve desenvolvimento de programas, centros de treinamento e assistência para veteranos de guerra. Depois da II Guerra, esse movimento se intensificou dado o elevado contingente de amputados, cegos e outras deficiências físicas e mentais, o tema ganha relevância política no interior dos países e também internacionalmente, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Dessa forma as pessoas com deficiência passariam a ser objeto do debate público e ações políticas, assim como outras questões de relevância social, embora em ritmos distintos de um país para o outro.
            Assim, no século XX, os indivíduos com deficiências começaram a ser considerados cidadãos com seus direitos e deveres de participação na sociedade, entretanto, ainda numa abordagem assistencial. Com o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, iniciam-se os primeiros movimentos organizados por familiares desses indivíduos. Movimentos esses que eram norteados pelas críticas à discriminação.
            Em suma, nesse panorama histórico buscamos resgatar elementos para uma visão geral sobre as pessoas com deficiência. Da execução sumária ao tratamento humanitário passaram-se séculos de história, numa trajetória irregular e heterogênea entre os países. A vista disso, é possível visualizar uma tendência de humanização desse grupo populacional. Apesar que, até nos dias de hoje, existem exemplos de discriminação e/ou maus-tratos, o amadurecimento das civilizações e o avanço dos temas ligados à cidadania e aos direitos humanos provocaram, sem dúvida, um novo olhar em relação às pessoas com deficiência.
            No Brasil ainda faltava pôr em prática as discussões internacionais sobre o assunto deficiência. Contudo, o enfoque dado para este contexto assistencial era a de que a institucionalização representava um custo para o sistema que, por sua vez, tinha o interesse no discurso da autonomia e da produtividade. Este também deveria atender os direitos humanos, principalmente os da minoria.
            De acordo com Jannuzzi (2004) a defesa da educação dos deficientes foi feita em função da economia dos cofres públicos e dos bolsos dos particulares. Desta forma, seriam evitados os manicômios, os asilos e as penitenciárias. Por fim, esses indivíduos seriam inclusos ao trabalho.
            Em conformidade com Aranha (2001) surge um outro paradigma: O Paradigma de Serviços. O objetivo dessa abordagem pela (American National Association of Rehabilition Counseling – A.N.A.R.C., 1973) era o de “ajudar pessoas com deficiência a obter uma existência tão próxima ao normal possível, a elas disponibilizando padrões e condições de vida cotidiana próxima às normas e padrões da sociedade”.
            Esse novo paradigma provocou muitas discussões entre acadêmicos. Percebia-se que a integração sozinha não seria suficiente para resolver o problema da segregação. Nesse sentido para Aranha (2001), a luta pela defesa dos direitos humanos e civis dos indivíduos com deficiência baseou-se na ideologia da normalização, favorecendo tanto o afastamento da pessoa das instituições, como os programas comunitários para o atendimento de suas necessidades (p.14).
            Aparecem dessa forma as contradições do sistema sociopolítico-econômico vigente na década de 60. Evidenciando-se a diminuição das responsabilidades sociais do Estado. Nesse caso, manter a população na improdutividade e na segregação custava muito ao sistema. Assim, surgiram entidades planejadas para desenvolver meios para que estes indivíduos pudessem voltar ao sistema produtivo com treinamento e educação especial. Desse modo, eles estavam preparados para o trabalho, e envolvia o conceito da integração.
            Com a dificuldade de integração devido a alguns fatores principalmente do papel da sociedade em se reorganizar para garantir o acesso de todos, surge o Paradigma do Suporte. Para Aranha (2001), esse paradigma parte da hipótese de que indivíduos com deficiência têm direito à convivência não segregada e ao acesso aos recursos disponíveis aos demais cidadãos.
            Na década de 90 o novo paradigma Inclusão Escolar surge, então, com um novo modelo de atendimento escolar e é uma reação contrária ao princípio de integração. Porém, a efetivação prática deste novo paradigma vem gerando muitas discussões e argumentações. Miranda (2003) afirma que existe o reconhecimento de que, trabalhar com classes heterogêneas, traz inúmeros benefícios para o desenvolvimento da criança deficiente e também para as crianças não deficientes, porque elas vivenciam a troca e a cooperação por meio das interações humanas. Entretanto, para que isso ocorra é necessária uma nova concepção de escola, de aluno, assim como uma nova compreensão sobre ensinar e aprender.
            Contudo o mesmo autor alude que a efetivação da prática educacional inclusiva não será garantida por meio de leis, de decretos que obriguem as escolas regulares a aceitarem os alunos com necessidades especiais. Somente a presença física do aluno deficiente, na classe não é garantia de inclusão. A escola deve estar preparada para trabalhar com os alunos, independente das diferenças ou características individuais deles.
            A ideia de que educação inclusiva possa dispensar a Educação Especial parece equivocada, pois pesquisas vêm mostrando a relevância do trabalho colaborativo entre ambas No entanto, a inclusão ainda é vista como responsabilidade da Educação Especial e não como um conjunto de medidas que o sistema de ensino como um todo, de maneira interdisciplinar, deveria adotar para efetivar tal proposta.

Século XXI: Paradigma de Suporte

            Foi baseado nestas ideias que surgiu o terceiro paradigma de Suporte. Nele pressupõe-se de que a pessoa com deficiência tem direito à convivência não segregada e ao acesso aos recursos disponíveis aos demais cidadãos. Dessa forma, fez-se necessário identificar o que poderia garantir tais prerrogativas.
            No Paradigma de Serviços, onde se contextualiza a ideia da integração, pressupõe-se o investimento principal na promoção de mudanças no indivíduo, na direção de sua normalização. Já no Paradigma de Suportes, onde o norte é a ideia da inclusão, são previstas intervenções tanto no processo de desenvolvimento do sujeito quanto no processo de reajuste da realidade social, através de suportes físicos, psicológicos, sociais e instrumentais, para que a pessoa com deficiência possa imediatamente adquirir condições de acesso ao espaço comum da vida na sociedade.
            A inclusão dos deficientes na escola regular, da maneira que foi propagandeada, é um reflexo do discurso do modelo social, porque pressupõe a inexistência da deficiência em si, deslocando-a para a sociedade (Barros, 2005). Em 2000, o Ministério da Educação propunha, a favor da inclusão de crianças deficientes no ensino regular, atestando essa possibilidade para toda e qualquer criança deficiente, sob um artifício generalizante que ignorava as especificidades de uma ampla categoria e encobria suas manifestações de extrema gravidade, aquelas não alcançáveis nem pela inclusão escolar, nem pelo otimismo do modelo social.
            A atenção às pessoas com deficiência tem sido mais efetiva na área da educação, mas constitui um desafio para a organização dos serviços públicos de saúde, que ainda apresenta reduzida oferta de serviços, difícil acesso, entre outros problemas.
            Em pesquisas recentes mostram que os professores necessitam de uma boa formação para ensinar a todos e não especificamente os deficientes. Os professores têm demonstrado dificuldades para trabalhar com os alunos em geral, não apenas com aqueles com deficiência. Infelizmente, ainda não se tem uma clara definição das nossas autoridades educacionais sobre a adoção de uma política verdadeiramente inclusiva em nossas escolas regulares.
            Podemos afirmar que ainda existe uma ambiguidade na direção dos atendimentos da educação especial. As principais tendências de nossas políticas nacionais de educação especial até 1990 foram o atendimento terapêutico e assistencial, em detrimento do educacional. O apoio do governo às ações das instituições particulares especializadas nas deficiências continua acontecendo, o que marca a visão segregativa da educação especial no Brasil. Se a educação especial se protege, ao se mostrar temerosa por uma mudança radical da escola, a educação regular se omite totalmente, passando pela questão muito rapidamente, mas protegendo-se da mesma forma de toda de qualquer transformação de seu trabalho nas escolas, alegando falta de preparo dos professores e de condições funcionais para atender a todas as crianças, inclusive as que têm deficiências.         
            Percebe-se que, o percurso histórico das pessoas com deficiência no Brasil, assim como em outras culturas e países, foi marcado por uma fase inicial de eliminação e exclusão, passando-se por um período de integração parcial através do atendimento especializado. Estas fases deixaram marcas e rótulos associados às pessoas com deficiência, muitas vezes tidas como incapazes e/ou doentes crônicas. Romper com esta visão, que implica numa política meramente assistencialista para as pessoas com deficiência, não é uma tarefa fácil.


Considerações finais

            Ao longo da história da humanidade, constata-se que houve uma radical mudança nos tratamentos dispensados às pessoas com deficiência. O que se tinha são atribuições à causa da deficiência baseado em preconceito, discriminação, misticismo e crenças que somente viriam a prejudicar o deficiente, ao exclui-los, prendê-los ou pior eliminá-los como se não fossem seres humanos. Infelizmente esses conceitos perduraram por longos anos, séculos, gerações e diversas culturas, resistindo ao tempo, contexto histórico, religiosa, e até social.
            A inclusão social das pessoas com deficiência representará a construção de um novo paradigma de sociedade para todos, uma sociedade comprometida com as minorias e que saberá interagir com a diversidade. O meio por excelência para se tentar chegar a essa inclusão é a educação, ao passo que ela proporciona a geração de conhecimento e de condutas apropriadas para esclarecer e emancipar as pessoas desde a mais tenra idade, capacitando-as a conduzir os seus destinos com base na valorização da dignidade humana e no compromisso solidário com toda a sociedade.
            Para tanto, é necessário promover a efetivação de políticas públicas capazes de promover a inclusão das pessoas com deficiência de maneira adequada na escola – seja regular ou especializada, como aumento do número de vagas em escolas especializadas, formação adequada dos professores, material didático adequado e condições de acessibilidade. Enquanto a sociedade não for inclusiva para atender a diversidade total das necessidades da pessoa com deficiência não haverá inclusão. As pessoas com deficiência precisam frequentar os serviços de apoio para seu desenvolvimento, mas a sociedade também precisa se reorganizar de forma a garantir o acesso da pessoa através das adaptações que se mostrem necessárias.


Referências
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Pletsch, M.D. (2009). Repensando a inclusão escolar de pessoas com deficiência mental: diretrizes políticas, currículo e práticas pedagógicas. Tese de Doutorado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Séguin, Maria Marta. O direito ao trabalho. In ROBERT, Cinthia (org.) O Direito do deficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
Silva, Otto Marque da. A Epopéia Ignorada: A História da Pessoas Deficiente no Mundo de Ontem e de hoje. São Paulo: Cedas,1987.







[1]              São de duas ordens: naturais e serviços. Os apoios naturais referem-se aos recursos usados pelo próprio sujeito com deficiência e por sua família, para promover o seu desenvolvimento. Os apoios baseados em serviços referem-se às estratégias usadas por profissionais da educação, saúde e assistência social (AAMR, 2006).

23 de dezembro de 2015

NATAL, O QUE DIZ A BÍBLIA


A festa de natal, uma das maiores festas da cristandade, permanece, contudo, um dos fatos historicamente menos conhecidos, inclusive pelos cristãos. Sabe-se que Jesus Cristo não nasceu no dia 25 de Dezembro, e não há documento que indique em que dia, mês ou ano isso teria acontecido. Os Evangelhos não esclarecem muito a respeito. Eles sequer foram escritos à época em que o nascimento teria ocorrido. Suas autorias foram muito posteriores à morte de Jesus Cristo. Calcula-se que, por volta do ano 100, no máximo, os quatro Evangelhos já existiam, mas não eram os únicos. Há notícias de outros dez (ou mais), escritos ao longo do século II, entre eles o de Tomé, de Pedro, dos Hebreus e da Verdade. No final da década de 170, Taciano, o Assírio, reuniu os quatro evangelhos que se tornaram o texto padrão das igrejas cristãs da Síria até o século IV. No século V, porém, houve nova mudança, com supressão e acréscimos de trechos que levaram à definição de um novo “Novo Testamento”. Daí concluir-se que, o Novo Testamento que lemos hoje com a história de Jesus, é um conjunto de livros que alguns bispos cristãos aprovaram e confirmaram mais de trezentos anos depois da morte de Jesus. Os Evangelhos Os quatro Evangelhos valeram-se das tradições orais acerca das palavras e da história de Jesus Cristo, algumas das quais remontavam às memórias daqueles que o conheceram. O evangelho de Marcos é considerado, pelos especialistas, como o mais antigo dos quatro. E, no entanto, ele nada diz sobre o nascimento de Jesus, pois começa contando a história de Jesus com o seu batismo por João Batista. O evangelho de João também é reticente sobre o assunto. Os outros dois evangelhos trazem informações sobre o nascimento. O de Mateus situa o nascimento de Jesus em Belém e o relaciona aos últimos anos do rei Herodes, o Grande. O evangelho de Lucas faz o mesmo mas traz duas informações novas: o recenseamento decretado pelo imperador romano e realizado quando Quirino era governador da Síria. ‘Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo império romano. Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria.” (Lucas, 2: 1-2). Jesus na manjedoura. Iluminura do Deliciarum Hortus de Herrad de Landsberg, séc. XII. Os contemporâneos de Jesus O nascimento de Jesus liga-se, portanto a pessoas e fatos históricos: o imperador César Augusto, o rei Herodes, o governador Quirino e o recenseamento da população do império. Cruzando esses dados pode-se determinar, afinal, quando Jesus Cristo nasceu. Vamos examinar brevemente cada um deles. César Augusto: primeiro imperador de Roma, Caio Otávio César Augusto, governou de 27 aC. a 14 d.C. Portanto, o nascimento e a infância de Jesus coincidem com o reinado de Augusto, como afirma o Evangelho de Lucas. Quirino, governador da Síria: segundo o historiador judaico-romano Flávio Josefo (c.37-c.95), Quirino tornou-se governador da Síria, com autoridade sobre a Judéia, no ano 6 d.C. Não tem como contestar a informação de Josefo, pois foi um fato crucial para a história judaica: naquele ano a Judéia passou a ficar submetida ao controle direto de Roma. Herodes, o Grande: rei da Judéia, Galileia e Samaria de 40 a.C. até sua morte, ocorrida em 4 a.C., ano um pouco antes do eclipse da Lua, datado pelos astrônomos entre 12-13 de março daquele ano. O evangelho de Mateus também informa que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes, o Grande (Mateus 2:1) e, que, devido a ordem do massacre dos inocentes, José, Maria e Jesus fugiram para o Egito onde ficaram até a morte de Herodes (Mateus 2: 15). Temos aqui incoerências nas datações: o evangelho de Lucas presume que Quirino e Herodes tenham sido contemporâneos, quando, na verdade, estavam separados por, no mínimo dez anos. O evangelho de Mateus afirma que a família sagrada ficou no Egito até a morte de Herodes mas, este morreu antes de Jesus nascer. Assim, as informações sobre os governos da época não esclarecem, ao contrário, criam problemas para determinar a data de nascimento de Jesus. O recenseamento José e Maria em Belém para o censo. Mosaico, Igreja Chora, Istambul. O evangelho de Lucas afirma que José junto com Maria, já grávida, viajou de Nazaré (na Galileia) para Belém (na Judeia) para se registrar (Lucas 2:4-5). Este recenseamento é um dos problemas mais difíceis para os estudiosos da Bíblia. Não há qualquer documento informando sobre um recenseamento no tempo de Herodes, o Grande. E mais: é duvidoso que o imperador Augusto tenha emitido um decreto determinando um recenseamento universal, isto é, de todo império romano. Há três grandes recenseamentos bem documentados que foram ordenados por Augusto: em 28 a.C., em 8 a.C. e em 14 d.C. Mas nenhum deles, porém, foi decretado para todo o império. E, ainda, eles se limitavam aos cidadãos romanos e José, sendo judeu, não era cidadão romano. Flávio Josefo informa que na Judéia, sob o governo de Quirino, houve um recenseamento local realizado no ano 6 d.C., quando a província saiu das mãos da família Herodes para o governo direto de Roma. De fato, este foi o primeiro recenseamento de Quirino (como afirma o evangelho de Lucas) mas ocorreu quando Herodes já estava morto havia dez anos. Um dado intrigante nesse episódio, é a presença de Maria acompanhando José ao suposto recenseamento. Não havia necessidade de ela registrar-se junto com o marido. Bastava um dos moradores de cada casa fazer as declarações devidas. Estranha-se o fato de Maria fazer uma viagem desnecessária estando no final de uma gravidez. Outro dado confuso é o fato da Galileia, à diferença da Judeia, permanecia sob um governo independente no ano 6 d.C. e, portanto, não estava sujeita a qualquer censo ou tributo romano. Este fato é confirmado por Josefo, por outros historiadores e pelas moedas correntes na época. Como galileu, José de Nazaré estava isento de ir à Belém para se registrar. A história de Lucas é historicamente impossível e internamente incoerente. O evangelista não estivera presente nos primeiros anos de Jesus, como ele mesmo confessa (Lucas, 1: 1-2); escreveu a partir do que ouvira contar talvez trinta anos ou mais depois da morte de Jesus. A estrela de Belém Reis magos. Mosaico, c.565, Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália. O evangelho de Mateus menciona o aparecimento de uma estrela à época do nascimento de Jesus e que acompanhou os reis magos até o local onde estava o recém-nascido. O que diz a astronomia e os registros históricos a respeito? A “estrela de Belém” citada por Mateus poderia ser um cometa, fenômeno que os antigos observavam com frequência. No outono de 12 a.C., há registros de que um cometa foi visto nos céus de Roma e também na Judeia, o que foi considerado um fato benéfico de indicação dos deuses exaltando o templo de Herodes, recém-concluído. Registros astronômicos chineses também se referem a este cometa. Segundo os astrônomos, o cometa de 12 a.C. era uma aparição grande e brilhante do cometa de Halley, visto pela última vez em 1985-1986. Esse é o único registro de cometa na época. Reis magos Mateus menciona, também, a visita de “magos vindos do Oriente”, guiados pela estrela, e trazendo presentes de ouro, incenso e mirra (Mateus, 2:1-12). Não os identifica como reis, não fornece os seus nomes e sequer diz quantos são. Também não deixa claro quando isso ocorreu, isto é, quanto tempo depois do nascimento de Jesus. Os magos levam presentes ao menino Jesus. Afresco em igreja ortodoxa, Capadócia, Turquia. Segundo a tradição do catolicismo ortodoxo da Síria, foram doze reis magos. Os cristãos chineses afirmam que um sábio chinês também visitou o menino Jesus. Esses exemplos mostram como a tradição ganhou contornos locais. Os nomes dos magos permaneceram desconhecidos até o século VI quando foi descoberto o manuscrito Excerpta Latina Barbari, de Alexandria: eram Melchior, Gaspar e Baltazar. O catolicismo etíope e o armênio, contudo, não concordam com esses nomes e batizaram os magos com outros nomes. Foi somente no século IX, que o catolicismo ocidental associou os reis magos a regiões do mundo antigo: Melchior, rei da Pérsia; Gaspar, rei da Índia; Baltazar, o único negro, rei da Arábia. Enfim, a história de Mateus sobre a estrela de Belém e os reis magos não se confirma historicamente. Possivelmente foi uma maneira de engrandecer o nascimento de Jesus tornando-o a realização das profecias judaicas sobre a vinda de um Messias: “Que os reis de Társis e das regiões litorâneas lhe tragam tributos; os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam presentes. Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações”(Salmo 72, 10-11).   “Eu o vejo, mas não agora; eu o avisto, mas não de perto. Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se levantará de Israel (Números, 24:17). Conclusão da origem do natal Foi só em meados do século IV d.C. que os cristãos começaram a celebrar a festa de natal no dia 25 de Dezembro. Naquele século, eles puderam exercer abertamente seus cultos pois o cristianismo fora liberado no império romano (Edito de Milão, em 313) e, depois, oficializado (Edito de Teodósio, em 380). A escolha do dia 25 de Dezembro foi intencional: era uma forma de cristianizar uma festa pagã extremamente popular na época: as Saturnálias, realizadas em homenagem ao deus Saturno. Os cristãos deram um novo significado às comemorações. Contudo, nem todos os cristãos concordaram. Na parte oriental do Império, foi fixado o 6 de Janeiro como data de nascimento de Jesus, dia de outra festa pagã destinada às crianças. Portanto, o Natal foi estabelecido no calendário cristão, não devido a uma certeza, mas por um conflito, uma batalha de festividades travada entre os cristãos e a maioria pagã. Jesus entre os profetas Isaias e Ezequiel, 1308-1311, Galeria Nacional, Londres. Fonte FOX, Robin Lane. Bíblia, verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Obrigado por compartilhar. Lembre-se de citar a fonte: http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/natal-o-que-diz-a-biblia/ - Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues

Higiene feminina na Inglaterra Tudor

Uma pergunta frequentemente feita é como que as mulheres lidavam com a menstruação no século XVI? Assim como hoje, era uma parte da vida que tinha de ser tratada. Não há duvidas de que o início da menstruação marcava uma importante etapa na transição da infância para a idade adulta no quesito de casamento. A idade de consentimento, definido normalmente entre 12 e 14 em toda a Europa, parece compatível com a chegada da menarca. Era também uma questão que mudava de classe para classe, uma vez que é necessário um certo percentual de peso e gordura corporal para acontecer o primeiro período. As mulheres das classe mais alta, levando vidas menos ativas e comendo proporções maiores de carne começavam seus ciclos mais cedo e sangravam mais. Margaret Beaufort claramente menstruou antes de sua adolescência, já que ela deu à luz ao futuro Henrique VII com 13 anos em 1457.
As mulheres de classe mais baixa, que tinham uma vida mais ativa fisicamente e sua dieta era composta por mais legumes, começavam seus ciclos mais tarde, um fato que é confirmado nas estatísticas relacionadas com a idade da mulher no casamento, embora estes também sejam determinados por muitos outros fatores econômicos e sociais. As mulheres de todas as classes teriam de recorrer a remédios de ervas. Um texto de 1476 incluía receitas para induzir a menstruação como uma mistura de soda, figos, sementes de alho, mirra, unguentos de lírio e polpa de pepino misturado no leite. Estes poderiam ser bebidos ou inseridos na vagina em pessários de lã macia.
De acordo com Ninya Mikhaila e Jane Malcolm-Davies há um silêncio quase completo de registro sobre as práticas de como lidar com a menstruação. Sabe-se que a palavra que denominava menstruação na Era Tudor era ‘flor’, e que mulheres menstruadas usavam noz-moscada e ramalhetes para esconder os odores decorrentes, já que o poder corrosivo dos fluídos reprodutivos femininos, transmissíveis através do cheio, constituíam um medo real na época. Para conter um fluxo intenso, as mulheres eram aconselhadas a tirar um pouco do pelo de um animal e prendê-la em uma árvore ‘verde’, ou seja, nova. Outro remédio que tinha sua eficácia ‘comprovada’ era ferver um sapo em uma panela e usá-lo em uma bolsa em torno da cintura. Certos tipos de musgos também eram usados para absorver o fluxo de sangue decorrentes de feridas, e podem ter sido usados por mulheres para também estancar o fluxo. Chumaços de algodão eram usados para limpar os órgãos femininos, por dentro e por fora.
Os ensinamentos da Igreja englobavam uma variedade de crenças na natureza desagradável e potencialmente prejudicial do sangue menstrual. Era um castigo de Deus que todas as mulheres tinham de suportar, como resultado da tentação de Eva, portanto não era permitido aliviar as dores da cólica e do sofrimento, pois eram parte do plano divino. Mulheres santas normalmente jejuavam e constatando que seus períodos pararam, interpretavam isso como um sinal divido ao invés de uma resposta de seu corpo à sua dieta restrita. Em alguns locais, os casais deveriam se abster das relações sexuais durante o período, e qualquer criança concebida nesse período nasceria ruiva e frágil.

O sangue menstrual também era temido pelos homens como uma representante das forças corrosivas do poder feminino. Uma crença afirmava que o sangue poderia prejudicar o pênis caso esse entrasse em contato, ou que ele poderia ser usado como uma poção de amor. Ele tinha o poder  de transformar vinho novo em azedo, fazer cair frutas das árvores, matar colmeias, dar raiva aos cães e deixar as colheitas estéreis. A crença mais estranha provavelmente é a de que uma criança em um berço poderia ser envenenada pelo olhar de uma velha em menopausa, pois o acúmulo de sangue a levaria a soltar vapores venenosos pelos olhos.
As funções do corpo da mulher eram misteriosas até para o mais educado dos homens. Os antropólogos modernos observaram que a preocupação excessiva com a menstruação era uma características de muitos nascimentos. Não só a menstruação regular indicava fertilidade, mas havia uma teoria de que os humores excessivos das mulheres e que o acúmulo de resíduos corporais eram liberados pela menstruação. Se isso não acontecesse, os resíduos acumulavam e causavam doenças. Uma mulher velha que já não menstruava era uma problema grave de segurança, uma vez que os humores em excesso e os resíduos poderiam ser capazes de envenenar as crianças e homens que entravam em contato com ela.
Os cirurgiões medievais e Tudor não compreendiam plenamente o papel que a menstruação tinha no ciclo reprodutivo da mulher, pois elas possuíam versões imperfeitas ou invertidas dos órgãos reprodutivos masculinos, pois sua ‘semente’ fria e úmida se misturaria com a ‘semente’ quente e seca do masculino, resultando na concepção. A menstruação era vista como um método do corpo de derramar sangue desnecessário, que era acumulado no corpo, sem o qual o útero transbordaria de líquidos e poderia asfixiar ou sufocar uma mulher. Desse modo, a abertura de uma veia ou de qualquer outra parte do corpo era considerado o mesmo que um sangramento menstrual, um meio de remoção dos líquidos perigosos. Desse modo, o sangramento também era um modo de evitar o desenvolvimento de características masculinas.
Na outra extremidade, o início da menopausa parece ter sido muito mais cedo do que é hoje. Os padrões dos partos das mulheres de classe alta sugerem que isso aconteceu em meados dos quarenta anos. A menopausa de Catarina de Aragão veio em 1525/1526, quando ela tinha quarenta anos, depois de seis concepções. Para muitos, a morte normalmente seguia os partos, e quem concebia mais de 10 crianças normalmente não engravidava mais após os trinta e tantos ou quarenta anos. Maria, a irmã mais nova de Henrique VII, teve quatro filhos com a idade entre 20 e 27 anos, e morreu uma década depois. Sua irmã mais velha, Margaret, se saiu melhor, tendo seu sétimo filho aos 26 anos e sobrevivendo por mais 26 anos. Elizabeth de York, Duquesa de Suffolk, teve pelo menos 11 filhos entre seus 18 e 36 anos. A cessão definitiva do período menstrual e a chegada da menopausa deixavam as mulheres mais vulneráveis a certas doenças, assim como hoje. A Trotula de Salerno escreveu que uma mulher que deixava de menstruar deveria começar a fazer jejuns e comer boa comida e bebida, para deixar seu sangue bom.  Outras crença diziam que a falta da menstruação de uma mulher a tornava mais masculina e propensa a muitas formas de loucura e convulsões.

Voltando ao aspecto puramente prático da menstruação, as mulheres de todas as classes precisavam de alguma coisa para absorver o fluxo de sangue. Traduções do século XVI da Bíblia (Isaías, capítulo 3, versículo 22) menciona o uso de panos para a menstruação e pistas adicionais podem ser obtidas através de contas da rainha Elizabeth onde há dezenas de menções a ‘muitos vallopes, todos de finos tecidos holandeses’, junto com outros itens de linho simples.
Sanitary Belts
Por boa parte do século XX, pedaços de panos eram rasgados e colocados entre as pernas, sendo suspensos por algum tipo de cintos para mantê-los no lugar. É muito provável que as mulheres usassem um tipo não muito diferente dos ‘sanitary belts’ usados na Europa e nos EUA até a década de 1970: um tipo de cinto que tinha uma aba ligando a parte de frente à de trás, na qual um pedaço de pano era colocado na zona apropriada. Eles eram sempre lavados e reutilizados – não havia nenhum material descartável em tempos Tudor.

Outras sugestões recentes sugerem tampões de pano, untados com mel e óleo, presos por um laço ao redor da coxa. As pessoas que se envolviam em algum trabalho manual ou atividade física deveria ter alguma forma de segurar seus panos e ter certeza que eles permanecessem no lugar.
De qualquer modo, a menstruação era um importante rito de passagem em uma era que colocava um alto valor na fertilidade, e também eram uma fonte de vergonha e inconveniência. Normalmente, porém, este paradoxo se encaixa muito bem na história do sexo feminino, com as mulheres sendo incentivadas a definir seus corpos através dos olhos masculinos e perderem a posse sobre suas próprias funções naturais. As mulheres medievais e Tudor não registraram suas experiências, no entanto, para as mulheres de todas as classes e idades, a menstruação era uma parte necessária da vida e que a sociedade era dependente.
Bibliografia:
GRUENINGER, Natalie. ‘Women’s Hygiene in Tudor England‘. Acesso em 30 de Março de 2013.
Women’s underwear and menstruation‘. Acesso em 30 de Março de 2013.
LICENCE, Amy. ‘To Bring on the Flowers: Medieval Women Menstruating‘. Acesso em 30 de Março de 2013.
Women and Medicine in the Middle Ages and Renaissance‘. Acesso em 30 de Março de 2013.


22 de dezembro de 2015

HISTÓRIA DA AMÉRICA E A BNCC

Quem se debruça sobre o componente de História na BNCC logo perceberá que grande parte da história da humanidade não foi contemplada. A história da Antiguidade, da Idade Média, está ausente. A história da Idade Moderna e da Idade Contemporânea está sub-representada. A Europa moderna aparece em função das "conquistas" da América e da África. Pretende-se com esses recortes dois objetivos: primeiro trazer para o aluno um mundo mais próximo e portanto mais fácil de ser aprendido, e segundo escapar às visões eurocêntricas que tem impregnado o ensino de história desde que este constitui parte dos currículos escolares. Começaremos por este último objetivo.
 
Como diz Edgardo Lander, com o colonialismo na América inicia-se não apenas a organização colonial do mundo, mas –simultaneamente– a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória, e do imaginário. "Dá-se início ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX e no qual, pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaço e do tempo –todas as culturas, povos e territórios do planeta, presentes e passados– numa grande narrativa universal" (LANDER, 2005). O pensamento crítico tem abordado nas últimas décadas estas questões, seja reunido em torno do pós-colonialismo, do pós-ocidentalismo, da perspectiva sul-sul ou por outros modelos e teorias, e isso tem sido levado às salas de aula das universidades e às abordagens das pesquisas.
 
A interpretação do Michel Rolph Trouillot sobre a independência do Haiti pode inscrever-se nessa trajetória. Trouillot colocou Haiti no centro do debate sobre os processos políticos e sociais americanos. Ele categorizou a independência do Haiti como um "não evento". Segundo o autor os contemporâneos do processo não podiam compreender a revolução em seus próprios termos porque ela não se encaixava na realidade e nas categorias dos homens da Ilustração. A possibilidade de que os "negros" de uma colônia francesa pudessem pensar a liberdade e atuar para assegurar seus direitos como homens era inconcebível dentro da ordem ontológica, compartilhada por boa parte do mundo ocidental. A ordem ontológica com a qual os europeus classificavam o mundo reservava aos povos não europeus um lugar inferior ao deles. Esse lugar em que os outros podiam ser situados dependia de uma escala com diferentes graus de humanidade. Aos povos africanos correspondia um dos graus inferiores dessa escala. Essa representação do mundo tinha sido criada pelo pensamento cristão e renascentista, e reeditada pelo Iluminismo e pelo pensamento científico. Mas a evidência empírica demonstrava outra coisa, demonstrava que os escravos de Saint-Domingue, a colônia que se transformaria em Haiti, atuavam politicamente. (Trouillot, 1995) A incapacidade para compreender os acontecimentos de Saint-Domingue, a ponto de negá-los, deveu-se a fato de que rompia com os três discursos mais problemáticos da modernidade: a escravidão, a colonização e a raça. Uma das perguntas que se faz Trouillot é: podem narrativas históricas dar conta de eventos que são inverossímeis para o mundo no qual acontecem?
 
Nós nos perguntamos como poderia ser operacionalizada esta análise sem conhecer o pensamento da Renascença e da Ilustração. Excluir o conhecimento dos processos históricos europeus desde a antiguidade até o período da expansão ultramarina portuguesa (porque a ênfase é em Portugal) em lugar de gerar pensamento crítico capaz de analisar, desnudar e interpretar o eurocentrismo, nos deixará sem ferramentas para sua crítica. O que deve mudar é o ponto de vista. Não ficarmos cegos. Não devemos trocar um etnocentrismo por outro.
 
E aqui chegamos a outro ponto dos que queremos abordar. Os problemas da BNCC não se reduzem às ausências, também as presenças são questionáveis. História da América é uma das áreas que está presente nesta proposta que, parafraseando a Von Martius, propõe ensinar a história do Brasil como a história da formação de seu povo, incluindo nesta formação a "mescla das raças": índios, africanos e portugueses. Daqui se infere que África e América ganharam destaque quantitativo, mas não qualitativo. América aparece em função do Brasil, assim como Brasil aparece frequentemente fora da América. E os índios? Por vezes são brasileiros, por vezes americanos. Reconhecidos politicamente quando organizados em movimentos sociais (CHHI7FOA090) ou em função da conquista (CHHI8FOA101), senão são atrelados a objetivos sobre mitos, cosmogonias, representações (CHHIMOA024). A diferenciação entre Incas e Tupis está dada pela forma de ocupação do território. As formas de organizações políticas no Brasil só são consideradas no período da colonização portuguesa (CHHI6FOA074).
 
A "conquista da América" aparece em função da expansão ultramarina europeia (CHHI8FOA106) e não poderia ser de outra forma já que a base trabalha como conceito de conquista. Então, o mundo europeu, Renascença, artes e ciências ingressam em função do expansionismo europeu (CHHI8FOA107). A conquista e colonização tomam conta de grande parte da realidade americana entre os séculos XV e XIX, deixando pouco ou nenhum lugar para os processos de etnogênese (CHHI8FOA110, CHHI8FOA111). Como foi salientado por Henrique Estrada em sua apresentação da Jornada de Debate sobre a BNCC organizada pela ANPUH Rio, as respostas que se esperam do aluno já estão dadas na fórmula que anuncia o objetivo. Desta forma, com a resposta preconcebida o objetivo de aprendizagem não induz à pergunta ou ao questionamento, mas apenas conduz a confirmar a hipótese subjacente, como por exemplo no objetivo CHHI8FOA113: "Compreender a Independência como um momento de reordenamento das relações de poder no interior do Brasil, por meio do estudo dos conflitos que demarcaram os primeiros momentos do país, tais como a Abdicação e a Cabanagem". Se bem que em todos os objetivos tiveram o "cuidado" de colocar o conteúdo específico como sugestão, precedidos de formulas como "tais como", "como por exemplo" etc., o prescritivo está na enunciação que precede: "compreender como um momento de reordenamento das relações de poder". Ainda sobre a questão das Independências, se bem que estas são inseparáveis da Revolução Francesa e da Revolução Liberal espanhola, o certo é que há dinâmicas atlânticas bem mais abrangentes, e dinâmicas continentais (andinas) que informam esse processo. A BNCC retoma uma visão totalmente eurocêntrica ao colocar a Revolução Francesa como centro de irradiação das revoluções pela independência (CHHI8FOA111); por que não as revoluções indígenas que estremeceram as Américas? Ou a revolução americana que antes impactou na Francesa?
 
Temos feito uma passagem rápida por alguns objetivos da BNCC para reafirmar que os problemas não são pontuais, mas dizem respeito a uma concepção de história.
 
Sobre o propósito das ausências (História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), que permitiriam apresentar ao aluno um mundo mais próximo, questionamos que seja possível ensinar alteridade sem considerar outros distantes no tempo e no espaço; alteridade do parecido a nós, não é alteridade. É subestimar o aluno.
 
Referências bibliográficas
LANDER, Edgardo. 2005. A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO.
TROUILLOT, Michel-Rolph. 1995. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press.
 
 
Graciela Bonassa Garcia - UFRRJ
Jessie Jane Vieira de Souza – UFRJ
Marcelo da Rocha Wanderley - UFF
Maria Teresa Toribio Lemos – UERJ
Maria Verónica Secreto - UFF
Norberto O. Ferreras - UFF
Ronald Raminelli - UFF
Vanderlei Vazelesk- UNIRIO
João Márcio Mendes Pereira - UFRRJ
Maria Elisa Noronha de Sá - PUC-Rio
Elisa Frühauf Garcia - UFF