23 de dezembro de 2015

NATAL, O QUE DIZ A BÍBLIA


A festa de natal, uma das maiores festas da cristandade, permanece, contudo, um dos fatos historicamente menos conhecidos, inclusive pelos cristãos. Sabe-se que Jesus Cristo não nasceu no dia 25 de Dezembro, e não há documento que indique em que dia, mês ou ano isso teria acontecido. Os Evangelhos não esclarecem muito a respeito. Eles sequer foram escritos à época em que o nascimento teria ocorrido. Suas autorias foram muito posteriores à morte de Jesus Cristo. Calcula-se que, por volta do ano 100, no máximo, os quatro Evangelhos já existiam, mas não eram os únicos. Há notícias de outros dez (ou mais), escritos ao longo do século II, entre eles o de Tomé, de Pedro, dos Hebreus e da Verdade. No final da década de 170, Taciano, o Assírio, reuniu os quatro evangelhos que se tornaram o texto padrão das igrejas cristãs da Síria até o século IV. No século V, porém, houve nova mudança, com supressão e acréscimos de trechos que levaram à definição de um novo “Novo Testamento”. Daí concluir-se que, o Novo Testamento que lemos hoje com a história de Jesus, é um conjunto de livros que alguns bispos cristãos aprovaram e confirmaram mais de trezentos anos depois da morte de Jesus. Os Evangelhos Os quatro Evangelhos valeram-se das tradições orais acerca das palavras e da história de Jesus Cristo, algumas das quais remontavam às memórias daqueles que o conheceram. O evangelho de Marcos é considerado, pelos especialistas, como o mais antigo dos quatro. E, no entanto, ele nada diz sobre o nascimento de Jesus, pois começa contando a história de Jesus com o seu batismo por João Batista. O evangelho de João também é reticente sobre o assunto. Os outros dois evangelhos trazem informações sobre o nascimento. O de Mateus situa o nascimento de Jesus em Belém e o relaciona aos últimos anos do rei Herodes, o Grande. O evangelho de Lucas faz o mesmo mas traz duas informações novas: o recenseamento decretado pelo imperador romano e realizado quando Quirino era governador da Síria. ‘Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo império romano. Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria.” (Lucas, 2: 1-2). Jesus na manjedoura. Iluminura do Deliciarum Hortus de Herrad de Landsberg, séc. XII. Os contemporâneos de Jesus O nascimento de Jesus liga-se, portanto a pessoas e fatos históricos: o imperador César Augusto, o rei Herodes, o governador Quirino e o recenseamento da população do império. Cruzando esses dados pode-se determinar, afinal, quando Jesus Cristo nasceu. Vamos examinar brevemente cada um deles. César Augusto: primeiro imperador de Roma, Caio Otávio César Augusto, governou de 27 aC. a 14 d.C. Portanto, o nascimento e a infância de Jesus coincidem com o reinado de Augusto, como afirma o Evangelho de Lucas. Quirino, governador da Síria: segundo o historiador judaico-romano Flávio Josefo (c.37-c.95), Quirino tornou-se governador da Síria, com autoridade sobre a Judéia, no ano 6 d.C. Não tem como contestar a informação de Josefo, pois foi um fato crucial para a história judaica: naquele ano a Judéia passou a ficar submetida ao controle direto de Roma. Herodes, o Grande: rei da Judéia, Galileia e Samaria de 40 a.C. até sua morte, ocorrida em 4 a.C., ano um pouco antes do eclipse da Lua, datado pelos astrônomos entre 12-13 de março daquele ano. O evangelho de Mateus também informa que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes, o Grande (Mateus 2:1) e, que, devido a ordem do massacre dos inocentes, José, Maria e Jesus fugiram para o Egito onde ficaram até a morte de Herodes (Mateus 2: 15). Temos aqui incoerências nas datações: o evangelho de Lucas presume que Quirino e Herodes tenham sido contemporâneos, quando, na verdade, estavam separados por, no mínimo dez anos. O evangelho de Mateus afirma que a família sagrada ficou no Egito até a morte de Herodes mas, este morreu antes de Jesus nascer. Assim, as informações sobre os governos da época não esclarecem, ao contrário, criam problemas para determinar a data de nascimento de Jesus. O recenseamento José e Maria em Belém para o censo. Mosaico, Igreja Chora, Istambul. O evangelho de Lucas afirma que José junto com Maria, já grávida, viajou de Nazaré (na Galileia) para Belém (na Judeia) para se registrar (Lucas 2:4-5). Este recenseamento é um dos problemas mais difíceis para os estudiosos da Bíblia. Não há qualquer documento informando sobre um recenseamento no tempo de Herodes, o Grande. E mais: é duvidoso que o imperador Augusto tenha emitido um decreto determinando um recenseamento universal, isto é, de todo império romano. Há três grandes recenseamentos bem documentados que foram ordenados por Augusto: em 28 a.C., em 8 a.C. e em 14 d.C. Mas nenhum deles, porém, foi decretado para todo o império. E, ainda, eles se limitavam aos cidadãos romanos e José, sendo judeu, não era cidadão romano. Flávio Josefo informa que na Judéia, sob o governo de Quirino, houve um recenseamento local realizado no ano 6 d.C., quando a província saiu das mãos da família Herodes para o governo direto de Roma. De fato, este foi o primeiro recenseamento de Quirino (como afirma o evangelho de Lucas) mas ocorreu quando Herodes já estava morto havia dez anos. Um dado intrigante nesse episódio, é a presença de Maria acompanhando José ao suposto recenseamento. Não havia necessidade de ela registrar-se junto com o marido. Bastava um dos moradores de cada casa fazer as declarações devidas. Estranha-se o fato de Maria fazer uma viagem desnecessária estando no final de uma gravidez. Outro dado confuso é o fato da Galileia, à diferença da Judeia, permanecia sob um governo independente no ano 6 d.C. e, portanto, não estava sujeita a qualquer censo ou tributo romano. Este fato é confirmado por Josefo, por outros historiadores e pelas moedas correntes na época. Como galileu, José de Nazaré estava isento de ir à Belém para se registrar. A história de Lucas é historicamente impossível e internamente incoerente. O evangelista não estivera presente nos primeiros anos de Jesus, como ele mesmo confessa (Lucas, 1: 1-2); escreveu a partir do que ouvira contar talvez trinta anos ou mais depois da morte de Jesus. A estrela de Belém Reis magos. Mosaico, c.565, Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália. O evangelho de Mateus menciona o aparecimento de uma estrela à época do nascimento de Jesus e que acompanhou os reis magos até o local onde estava o recém-nascido. O que diz a astronomia e os registros históricos a respeito? A “estrela de Belém” citada por Mateus poderia ser um cometa, fenômeno que os antigos observavam com frequência. No outono de 12 a.C., há registros de que um cometa foi visto nos céus de Roma e também na Judeia, o que foi considerado um fato benéfico de indicação dos deuses exaltando o templo de Herodes, recém-concluído. Registros astronômicos chineses também se referem a este cometa. Segundo os astrônomos, o cometa de 12 a.C. era uma aparição grande e brilhante do cometa de Halley, visto pela última vez em 1985-1986. Esse é o único registro de cometa na época. Reis magos Mateus menciona, também, a visita de “magos vindos do Oriente”, guiados pela estrela, e trazendo presentes de ouro, incenso e mirra (Mateus, 2:1-12). Não os identifica como reis, não fornece os seus nomes e sequer diz quantos são. Também não deixa claro quando isso ocorreu, isto é, quanto tempo depois do nascimento de Jesus. Os magos levam presentes ao menino Jesus. Afresco em igreja ortodoxa, Capadócia, Turquia. Segundo a tradição do catolicismo ortodoxo da Síria, foram doze reis magos. Os cristãos chineses afirmam que um sábio chinês também visitou o menino Jesus. Esses exemplos mostram como a tradição ganhou contornos locais. Os nomes dos magos permaneceram desconhecidos até o século VI quando foi descoberto o manuscrito Excerpta Latina Barbari, de Alexandria: eram Melchior, Gaspar e Baltazar. O catolicismo etíope e o armênio, contudo, não concordam com esses nomes e batizaram os magos com outros nomes. Foi somente no século IX, que o catolicismo ocidental associou os reis magos a regiões do mundo antigo: Melchior, rei da Pérsia; Gaspar, rei da Índia; Baltazar, o único negro, rei da Arábia. Enfim, a história de Mateus sobre a estrela de Belém e os reis magos não se confirma historicamente. Possivelmente foi uma maneira de engrandecer o nascimento de Jesus tornando-o a realização das profecias judaicas sobre a vinda de um Messias: “Que os reis de Társis e das regiões litorâneas lhe tragam tributos; os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam presentes. Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações”(Salmo 72, 10-11).   “Eu o vejo, mas não agora; eu o avisto, mas não de perto. Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se levantará de Israel (Números, 24:17). Conclusão da origem do natal Foi só em meados do século IV d.C. que os cristãos começaram a celebrar a festa de natal no dia 25 de Dezembro. Naquele século, eles puderam exercer abertamente seus cultos pois o cristianismo fora liberado no império romano (Edito de Milão, em 313) e, depois, oficializado (Edito de Teodósio, em 380). A escolha do dia 25 de Dezembro foi intencional: era uma forma de cristianizar uma festa pagã extremamente popular na época: as Saturnálias, realizadas em homenagem ao deus Saturno. Os cristãos deram um novo significado às comemorações. Contudo, nem todos os cristãos concordaram. Na parte oriental do Império, foi fixado o 6 de Janeiro como data de nascimento de Jesus, dia de outra festa pagã destinada às crianças. Portanto, o Natal foi estabelecido no calendário cristão, não devido a uma certeza, mas por um conflito, uma batalha de festividades travada entre os cristãos e a maioria pagã. Jesus entre os profetas Isaias e Ezequiel, 1308-1311, Galeria Nacional, Londres. Fonte FOX, Robin Lane. Bíblia, verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Obrigado por compartilhar. Lembre-se de citar a fonte: http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/natal-o-que-diz-a-biblia/ - Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues

Higiene feminina na Inglaterra Tudor

Uma pergunta frequentemente feita é como que as mulheres lidavam com a menstruação no século XVI? Assim como hoje, era uma parte da vida que tinha de ser tratada. Não há duvidas de que o início da menstruação marcava uma importante etapa na transição da infância para a idade adulta no quesito de casamento. A idade de consentimento, definido normalmente entre 12 e 14 em toda a Europa, parece compatível com a chegada da menarca. Era também uma questão que mudava de classe para classe, uma vez que é necessário um certo percentual de peso e gordura corporal para acontecer o primeiro período. As mulheres das classe mais alta, levando vidas menos ativas e comendo proporções maiores de carne começavam seus ciclos mais cedo e sangravam mais. Margaret Beaufort claramente menstruou antes de sua adolescência, já que ela deu à luz ao futuro Henrique VII com 13 anos em 1457.
As mulheres de classe mais baixa, que tinham uma vida mais ativa fisicamente e sua dieta era composta por mais legumes, começavam seus ciclos mais tarde, um fato que é confirmado nas estatísticas relacionadas com a idade da mulher no casamento, embora estes também sejam determinados por muitos outros fatores econômicos e sociais. As mulheres de todas as classes teriam de recorrer a remédios de ervas. Um texto de 1476 incluía receitas para induzir a menstruação como uma mistura de soda, figos, sementes de alho, mirra, unguentos de lírio e polpa de pepino misturado no leite. Estes poderiam ser bebidos ou inseridos na vagina em pessários de lã macia.
De acordo com Ninya Mikhaila e Jane Malcolm-Davies há um silêncio quase completo de registro sobre as práticas de como lidar com a menstruação. Sabe-se que a palavra que denominava menstruação na Era Tudor era ‘flor’, e que mulheres menstruadas usavam noz-moscada e ramalhetes para esconder os odores decorrentes, já que o poder corrosivo dos fluídos reprodutivos femininos, transmissíveis através do cheio, constituíam um medo real na época. Para conter um fluxo intenso, as mulheres eram aconselhadas a tirar um pouco do pelo de um animal e prendê-la em uma árvore ‘verde’, ou seja, nova. Outro remédio que tinha sua eficácia ‘comprovada’ era ferver um sapo em uma panela e usá-lo em uma bolsa em torno da cintura. Certos tipos de musgos também eram usados para absorver o fluxo de sangue decorrentes de feridas, e podem ter sido usados por mulheres para também estancar o fluxo. Chumaços de algodão eram usados para limpar os órgãos femininos, por dentro e por fora.
Os ensinamentos da Igreja englobavam uma variedade de crenças na natureza desagradável e potencialmente prejudicial do sangue menstrual. Era um castigo de Deus que todas as mulheres tinham de suportar, como resultado da tentação de Eva, portanto não era permitido aliviar as dores da cólica e do sofrimento, pois eram parte do plano divino. Mulheres santas normalmente jejuavam e constatando que seus períodos pararam, interpretavam isso como um sinal divido ao invés de uma resposta de seu corpo à sua dieta restrita. Em alguns locais, os casais deveriam se abster das relações sexuais durante o período, e qualquer criança concebida nesse período nasceria ruiva e frágil.

O sangue menstrual também era temido pelos homens como uma representante das forças corrosivas do poder feminino. Uma crença afirmava que o sangue poderia prejudicar o pênis caso esse entrasse em contato, ou que ele poderia ser usado como uma poção de amor. Ele tinha o poder  de transformar vinho novo em azedo, fazer cair frutas das árvores, matar colmeias, dar raiva aos cães e deixar as colheitas estéreis. A crença mais estranha provavelmente é a de que uma criança em um berço poderia ser envenenada pelo olhar de uma velha em menopausa, pois o acúmulo de sangue a levaria a soltar vapores venenosos pelos olhos.
As funções do corpo da mulher eram misteriosas até para o mais educado dos homens. Os antropólogos modernos observaram que a preocupação excessiva com a menstruação era uma características de muitos nascimentos. Não só a menstruação regular indicava fertilidade, mas havia uma teoria de que os humores excessivos das mulheres e que o acúmulo de resíduos corporais eram liberados pela menstruação. Se isso não acontecesse, os resíduos acumulavam e causavam doenças. Uma mulher velha que já não menstruava era uma problema grave de segurança, uma vez que os humores em excesso e os resíduos poderiam ser capazes de envenenar as crianças e homens que entravam em contato com ela.
Os cirurgiões medievais e Tudor não compreendiam plenamente o papel que a menstruação tinha no ciclo reprodutivo da mulher, pois elas possuíam versões imperfeitas ou invertidas dos órgãos reprodutivos masculinos, pois sua ‘semente’ fria e úmida se misturaria com a ‘semente’ quente e seca do masculino, resultando na concepção. A menstruação era vista como um método do corpo de derramar sangue desnecessário, que era acumulado no corpo, sem o qual o útero transbordaria de líquidos e poderia asfixiar ou sufocar uma mulher. Desse modo, a abertura de uma veia ou de qualquer outra parte do corpo era considerado o mesmo que um sangramento menstrual, um meio de remoção dos líquidos perigosos. Desse modo, o sangramento também era um modo de evitar o desenvolvimento de características masculinas.
Na outra extremidade, o início da menopausa parece ter sido muito mais cedo do que é hoje. Os padrões dos partos das mulheres de classe alta sugerem que isso aconteceu em meados dos quarenta anos. A menopausa de Catarina de Aragão veio em 1525/1526, quando ela tinha quarenta anos, depois de seis concepções. Para muitos, a morte normalmente seguia os partos, e quem concebia mais de 10 crianças normalmente não engravidava mais após os trinta e tantos ou quarenta anos. Maria, a irmã mais nova de Henrique VII, teve quatro filhos com a idade entre 20 e 27 anos, e morreu uma década depois. Sua irmã mais velha, Margaret, se saiu melhor, tendo seu sétimo filho aos 26 anos e sobrevivendo por mais 26 anos. Elizabeth de York, Duquesa de Suffolk, teve pelo menos 11 filhos entre seus 18 e 36 anos. A cessão definitiva do período menstrual e a chegada da menopausa deixavam as mulheres mais vulneráveis a certas doenças, assim como hoje. A Trotula de Salerno escreveu que uma mulher que deixava de menstruar deveria começar a fazer jejuns e comer boa comida e bebida, para deixar seu sangue bom.  Outras crença diziam que a falta da menstruação de uma mulher a tornava mais masculina e propensa a muitas formas de loucura e convulsões.

Voltando ao aspecto puramente prático da menstruação, as mulheres de todas as classes precisavam de alguma coisa para absorver o fluxo de sangue. Traduções do século XVI da Bíblia (Isaías, capítulo 3, versículo 22) menciona o uso de panos para a menstruação e pistas adicionais podem ser obtidas através de contas da rainha Elizabeth onde há dezenas de menções a ‘muitos vallopes, todos de finos tecidos holandeses’, junto com outros itens de linho simples.
Sanitary Belts
Por boa parte do século XX, pedaços de panos eram rasgados e colocados entre as pernas, sendo suspensos por algum tipo de cintos para mantê-los no lugar. É muito provável que as mulheres usassem um tipo não muito diferente dos ‘sanitary belts’ usados na Europa e nos EUA até a década de 1970: um tipo de cinto que tinha uma aba ligando a parte de frente à de trás, na qual um pedaço de pano era colocado na zona apropriada. Eles eram sempre lavados e reutilizados – não havia nenhum material descartável em tempos Tudor.

Outras sugestões recentes sugerem tampões de pano, untados com mel e óleo, presos por um laço ao redor da coxa. As pessoas que se envolviam em algum trabalho manual ou atividade física deveria ter alguma forma de segurar seus panos e ter certeza que eles permanecessem no lugar.
De qualquer modo, a menstruação era um importante rito de passagem em uma era que colocava um alto valor na fertilidade, e também eram uma fonte de vergonha e inconveniência. Normalmente, porém, este paradoxo se encaixa muito bem na história do sexo feminino, com as mulheres sendo incentivadas a definir seus corpos através dos olhos masculinos e perderem a posse sobre suas próprias funções naturais. As mulheres medievais e Tudor não registraram suas experiências, no entanto, para as mulheres de todas as classes e idades, a menstruação era uma parte necessária da vida e que a sociedade era dependente.
Bibliografia:
GRUENINGER, Natalie. ‘Women’s Hygiene in Tudor England‘. Acesso em 30 de Março de 2013.
Women’s underwear and menstruation‘. Acesso em 30 de Março de 2013.
LICENCE, Amy. ‘To Bring on the Flowers: Medieval Women Menstruating‘. Acesso em 30 de Março de 2013.
Women and Medicine in the Middle Ages and Renaissance‘. Acesso em 30 de Março de 2013.


22 de dezembro de 2015

HISTÓRIA DA AMÉRICA E A BNCC

Quem se debruça sobre o componente de História na BNCC logo perceberá que grande parte da história da humanidade não foi contemplada. A história da Antiguidade, da Idade Média, está ausente. A história da Idade Moderna e da Idade Contemporânea está sub-representada. A Europa moderna aparece em função das "conquistas" da América e da África. Pretende-se com esses recortes dois objetivos: primeiro trazer para o aluno um mundo mais próximo e portanto mais fácil de ser aprendido, e segundo escapar às visões eurocêntricas que tem impregnado o ensino de história desde que este constitui parte dos currículos escolares. Começaremos por este último objetivo.
 
Como diz Edgardo Lander, com o colonialismo na América inicia-se não apenas a organização colonial do mundo, mas –simultaneamente– a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória, e do imaginário. "Dá-se início ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX e no qual, pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaço e do tempo –todas as culturas, povos e territórios do planeta, presentes e passados– numa grande narrativa universal" (LANDER, 2005). O pensamento crítico tem abordado nas últimas décadas estas questões, seja reunido em torno do pós-colonialismo, do pós-ocidentalismo, da perspectiva sul-sul ou por outros modelos e teorias, e isso tem sido levado às salas de aula das universidades e às abordagens das pesquisas.
 
A interpretação do Michel Rolph Trouillot sobre a independência do Haiti pode inscrever-se nessa trajetória. Trouillot colocou Haiti no centro do debate sobre os processos políticos e sociais americanos. Ele categorizou a independência do Haiti como um "não evento". Segundo o autor os contemporâneos do processo não podiam compreender a revolução em seus próprios termos porque ela não se encaixava na realidade e nas categorias dos homens da Ilustração. A possibilidade de que os "negros" de uma colônia francesa pudessem pensar a liberdade e atuar para assegurar seus direitos como homens era inconcebível dentro da ordem ontológica, compartilhada por boa parte do mundo ocidental. A ordem ontológica com a qual os europeus classificavam o mundo reservava aos povos não europeus um lugar inferior ao deles. Esse lugar em que os outros podiam ser situados dependia de uma escala com diferentes graus de humanidade. Aos povos africanos correspondia um dos graus inferiores dessa escala. Essa representação do mundo tinha sido criada pelo pensamento cristão e renascentista, e reeditada pelo Iluminismo e pelo pensamento científico. Mas a evidência empírica demonstrava outra coisa, demonstrava que os escravos de Saint-Domingue, a colônia que se transformaria em Haiti, atuavam politicamente. (Trouillot, 1995) A incapacidade para compreender os acontecimentos de Saint-Domingue, a ponto de negá-los, deveu-se a fato de que rompia com os três discursos mais problemáticos da modernidade: a escravidão, a colonização e a raça. Uma das perguntas que se faz Trouillot é: podem narrativas históricas dar conta de eventos que são inverossímeis para o mundo no qual acontecem?
 
Nós nos perguntamos como poderia ser operacionalizada esta análise sem conhecer o pensamento da Renascença e da Ilustração. Excluir o conhecimento dos processos históricos europeus desde a antiguidade até o período da expansão ultramarina portuguesa (porque a ênfase é em Portugal) em lugar de gerar pensamento crítico capaz de analisar, desnudar e interpretar o eurocentrismo, nos deixará sem ferramentas para sua crítica. O que deve mudar é o ponto de vista. Não ficarmos cegos. Não devemos trocar um etnocentrismo por outro.
 
E aqui chegamos a outro ponto dos que queremos abordar. Os problemas da BNCC não se reduzem às ausências, também as presenças são questionáveis. História da América é uma das áreas que está presente nesta proposta que, parafraseando a Von Martius, propõe ensinar a história do Brasil como a história da formação de seu povo, incluindo nesta formação a "mescla das raças": índios, africanos e portugueses. Daqui se infere que África e América ganharam destaque quantitativo, mas não qualitativo. América aparece em função do Brasil, assim como Brasil aparece frequentemente fora da América. E os índios? Por vezes são brasileiros, por vezes americanos. Reconhecidos politicamente quando organizados em movimentos sociais (CHHI7FOA090) ou em função da conquista (CHHI8FOA101), senão são atrelados a objetivos sobre mitos, cosmogonias, representações (CHHIMOA024). A diferenciação entre Incas e Tupis está dada pela forma de ocupação do território. As formas de organizações políticas no Brasil só são consideradas no período da colonização portuguesa (CHHI6FOA074).
 
A "conquista da América" aparece em função da expansão ultramarina europeia (CHHI8FOA106) e não poderia ser de outra forma já que a base trabalha como conceito de conquista. Então, o mundo europeu, Renascença, artes e ciências ingressam em função do expansionismo europeu (CHHI8FOA107). A conquista e colonização tomam conta de grande parte da realidade americana entre os séculos XV e XIX, deixando pouco ou nenhum lugar para os processos de etnogênese (CHHI8FOA110, CHHI8FOA111). Como foi salientado por Henrique Estrada em sua apresentação da Jornada de Debate sobre a BNCC organizada pela ANPUH Rio, as respostas que se esperam do aluno já estão dadas na fórmula que anuncia o objetivo. Desta forma, com a resposta preconcebida o objetivo de aprendizagem não induz à pergunta ou ao questionamento, mas apenas conduz a confirmar a hipótese subjacente, como por exemplo no objetivo CHHI8FOA113: "Compreender a Independência como um momento de reordenamento das relações de poder no interior do Brasil, por meio do estudo dos conflitos que demarcaram os primeiros momentos do país, tais como a Abdicação e a Cabanagem". Se bem que em todos os objetivos tiveram o "cuidado" de colocar o conteúdo específico como sugestão, precedidos de formulas como "tais como", "como por exemplo" etc., o prescritivo está na enunciação que precede: "compreender como um momento de reordenamento das relações de poder". Ainda sobre a questão das Independências, se bem que estas são inseparáveis da Revolução Francesa e da Revolução Liberal espanhola, o certo é que há dinâmicas atlânticas bem mais abrangentes, e dinâmicas continentais (andinas) que informam esse processo. A BNCC retoma uma visão totalmente eurocêntrica ao colocar a Revolução Francesa como centro de irradiação das revoluções pela independência (CHHI8FOA111); por que não as revoluções indígenas que estremeceram as Américas? Ou a revolução americana que antes impactou na Francesa?
 
Temos feito uma passagem rápida por alguns objetivos da BNCC para reafirmar que os problemas não são pontuais, mas dizem respeito a uma concepção de história.
 
Sobre o propósito das ausências (História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), que permitiriam apresentar ao aluno um mundo mais próximo, questionamos que seja possível ensinar alteridade sem considerar outros distantes no tempo e no espaço; alteridade do parecido a nós, não é alteridade. É subestimar o aluno.
 
Referências bibliográficas
LANDER, Edgardo. 2005. A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO.
TROUILLOT, Michel-Rolph. 1995. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press.
 
 
Graciela Bonassa Garcia - UFRRJ
Jessie Jane Vieira de Souza – UFRJ
Marcelo da Rocha Wanderley - UFF
Maria Teresa Toribio Lemos – UERJ
Maria Verónica Secreto - UFF
Norberto O. Ferreras - UFF
Ronald Raminelli - UFF
Vanderlei Vazelesk- UNIRIO
João Márcio Mendes Pereira - UFRRJ
Maria Elisa Noronha de Sá - PUC-Rio
Elisa Frühauf Garcia - UFF