22 de dezembro de 2015

HISTÓRIA DA AMÉRICA E A BNCC

Quem se debruça sobre o componente de História na BNCC logo perceberá que grande parte da história da humanidade não foi contemplada. A história da Antiguidade, da Idade Média, está ausente. A história da Idade Moderna e da Idade Contemporânea está sub-representada. A Europa moderna aparece em função das "conquistas" da América e da África. Pretende-se com esses recortes dois objetivos: primeiro trazer para o aluno um mundo mais próximo e portanto mais fácil de ser aprendido, e segundo escapar às visões eurocêntricas que tem impregnado o ensino de história desde que este constitui parte dos currículos escolares. Começaremos por este último objetivo.
 
Como diz Edgardo Lander, com o colonialismo na América inicia-se não apenas a organização colonial do mundo, mas –simultaneamente– a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória, e do imaginário. "Dá-se início ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX e no qual, pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaço e do tempo –todas as culturas, povos e territórios do planeta, presentes e passados– numa grande narrativa universal" (LANDER, 2005). O pensamento crítico tem abordado nas últimas décadas estas questões, seja reunido em torno do pós-colonialismo, do pós-ocidentalismo, da perspectiva sul-sul ou por outros modelos e teorias, e isso tem sido levado às salas de aula das universidades e às abordagens das pesquisas.
 
A interpretação do Michel Rolph Trouillot sobre a independência do Haiti pode inscrever-se nessa trajetória. Trouillot colocou Haiti no centro do debate sobre os processos políticos e sociais americanos. Ele categorizou a independência do Haiti como um "não evento". Segundo o autor os contemporâneos do processo não podiam compreender a revolução em seus próprios termos porque ela não se encaixava na realidade e nas categorias dos homens da Ilustração. A possibilidade de que os "negros" de uma colônia francesa pudessem pensar a liberdade e atuar para assegurar seus direitos como homens era inconcebível dentro da ordem ontológica, compartilhada por boa parte do mundo ocidental. A ordem ontológica com a qual os europeus classificavam o mundo reservava aos povos não europeus um lugar inferior ao deles. Esse lugar em que os outros podiam ser situados dependia de uma escala com diferentes graus de humanidade. Aos povos africanos correspondia um dos graus inferiores dessa escala. Essa representação do mundo tinha sido criada pelo pensamento cristão e renascentista, e reeditada pelo Iluminismo e pelo pensamento científico. Mas a evidência empírica demonstrava outra coisa, demonstrava que os escravos de Saint-Domingue, a colônia que se transformaria em Haiti, atuavam politicamente. (Trouillot, 1995) A incapacidade para compreender os acontecimentos de Saint-Domingue, a ponto de negá-los, deveu-se a fato de que rompia com os três discursos mais problemáticos da modernidade: a escravidão, a colonização e a raça. Uma das perguntas que se faz Trouillot é: podem narrativas históricas dar conta de eventos que são inverossímeis para o mundo no qual acontecem?
 
Nós nos perguntamos como poderia ser operacionalizada esta análise sem conhecer o pensamento da Renascença e da Ilustração. Excluir o conhecimento dos processos históricos europeus desde a antiguidade até o período da expansão ultramarina portuguesa (porque a ênfase é em Portugal) em lugar de gerar pensamento crítico capaz de analisar, desnudar e interpretar o eurocentrismo, nos deixará sem ferramentas para sua crítica. O que deve mudar é o ponto de vista. Não ficarmos cegos. Não devemos trocar um etnocentrismo por outro.
 
E aqui chegamos a outro ponto dos que queremos abordar. Os problemas da BNCC não se reduzem às ausências, também as presenças são questionáveis. História da América é uma das áreas que está presente nesta proposta que, parafraseando a Von Martius, propõe ensinar a história do Brasil como a história da formação de seu povo, incluindo nesta formação a "mescla das raças": índios, africanos e portugueses. Daqui se infere que África e América ganharam destaque quantitativo, mas não qualitativo. América aparece em função do Brasil, assim como Brasil aparece frequentemente fora da América. E os índios? Por vezes são brasileiros, por vezes americanos. Reconhecidos politicamente quando organizados em movimentos sociais (CHHI7FOA090) ou em função da conquista (CHHI8FOA101), senão são atrelados a objetivos sobre mitos, cosmogonias, representações (CHHIMOA024). A diferenciação entre Incas e Tupis está dada pela forma de ocupação do território. As formas de organizações políticas no Brasil só são consideradas no período da colonização portuguesa (CHHI6FOA074).
 
A "conquista da América" aparece em função da expansão ultramarina europeia (CHHI8FOA106) e não poderia ser de outra forma já que a base trabalha como conceito de conquista. Então, o mundo europeu, Renascença, artes e ciências ingressam em função do expansionismo europeu (CHHI8FOA107). A conquista e colonização tomam conta de grande parte da realidade americana entre os séculos XV e XIX, deixando pouco ou nenhum lugar para os processos de etnogênese (CHHI8FOA110, CHHI8FOA111). Como foi salientado por Henrique Estrada em sua apresentação da Jornada de Debate sobre a BNCC organizada pela ANPUH Rio, as respostas que se esperam do aluno já estão dadas na fórmula que anuncia o objetivo. Desta forma, com a resposta preconcebida o objetivo de aprendizagem não induz à pergunta ou ao questionamento, mas apenas conduz a confirmar a hipótese subjacente, como por exemplo no objetivo CHHI8FOA113: "Compreender a Independência como um momento de reordenamento das relações de poder no interior do Brasil, por meio do estudo dos conflitos que demarcaram os primeiros momentos do país, tais como a Abdicação e a Cabanagem". Se bem que em todos os objetivos tiveram o "cuidado" de colocar o conteúdo específico como sugestão, precedidos de formulas como "tais como", "como por exemplo" etc., o prescritivo está na enunciação que precede: "compreender como um momento de reordenamento das relações de poder". Ainda sobre a questão das Independências, se bem que estas são inseparáveis da Revolução Francesa e da Revolução Liberal espanhola, o certo é que há dinâmicas atlânticas bem mais abrangentes, e dinâmicas continentais (andinas) que informam esse processo. A BNCC retoma uma visão totalmente eurocêntrica ao colocar a Revolução Francesa como centro de irradiação das revoluções pela independência (CHHI8FOA111); por que não as revoluções indígenas que estremeceram as Américas? Ou a revolução americana que antes impactou na Francesa?
 
Temos feito uma passagem rápida por alguns objetivos da BNCC para reafirmar que os problemas não são pontuais, mas dizem respeito a uma concepção de história.
 
Sobre o propósito das ausências (História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), que permitiriam apresentar ao aluno um mundo mais próximo, questionamos que seja possível ensinar alteridade sem considerar outros distantes no tempo e no espaço; alteridade do parecido a nós, não é alteridade. É subestimar o aluno.
 
Referências bibliográficas
LANDER, Edgardo. 2005. A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO.
TROUILLOT, Michel-Rolph. 1995. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press.
 
 
Graciela Bonassa Garcia - UFRRJ
Jessie Jane Vieira de Souza – UFRJ
Marcelo da Rocha Wanderley - UFF
Maria Teresa Toribio Lemos – UERJ
Maria Verónica Secreto - UFF
Norberto O. Ferreras - UFF
Ronald Raminelli - UFF
Vanderlei Vazelesk- UNIRIO
João Márcio Mendes Pereira - UFRRJ
Maria Elisa Noronha de Sá - PUC-Rio
Elisa Frühauf Garcia - UFF

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