"Distensão", oposições e crise econômica
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
A estabilidade política alcançada no mandato de Médici possibilitou ao presidente indicar o nome do seu sucessor. As eleições indiretas para presidente da República, realizadas no Congresso Nacional não passavam de mera fachada com objetivo de encobrir o processo eleitoral de natureza antidemocrática.
O governo dispunha de folgada maioria no Congresso Nacional. O partido governista, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), controlava as duas casas legislativas: Senado e Camâra Federal.
Mesmo assim, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) que fazia o papel da oposição "consentida" no período da ditadura, lançou uma candidatura de protesto com Ulisses Guimarães, candidato a presidência; e Barbosa Lima Sobrinho, como vice-presidente. Conforme o esperado, o Congresso Nacional referendou o nome de Ernesto Geisel como presidente da República.
Distensão lenta, gradual e segura
Geisel assumiu o governo prometendo retorno à democracia por meio de um processo gradual e seguro. Também denominado de "distensão", o projeto de redemocratização concebido por Geisel previa a adoção de um conjunto de medidas políticas liberalizantes, cuidadosamente controladas pelo Executivo Federal.
Isso incluía a suspensão parcial da censura prévia aos meios de comunicação e a revogação gradativa de alguns dos mecanismos mais explícitos de coerção legal presentes no conjunto das leis em vigor, que cerceavam as liberdades públicas e democráticas e os direitos individuais e constitucionais.
É preciso salientar, porém, que o projeto de distensão não refletia a crença na democracia, tanto por parte de Geisel como dos militares que participavam de seu governo. Na verdade, a distensão era um projeto preconizado como uma "saída" para que as Forças Armadas se retirassem do poder. Depois de 10 anos de ditadura militar, período em que três generais governaram o país, as Forças Armadas se desgastaram.
Situação insustentável das Forças Armadas
A violência repressiva e o controle policial imposto sobre todos os setores da sociedade, além da ausência de liberdades civis e públicas, haviam conduzido o país a uma situação insustentável do ponto de vista da manutenção do regime de força que caracterizava a ditadura militar.
Por outro lado, o fato de os militares terem assumido diretamente o governo, ocasionou uma politização negativa dentro das Forças Armadas desvirtuando os propósitos constitucionais da instituição militar. A "anarquia" e a "desordem", promovida por setores militares radicais, permearam todos os governos da ditadura, e tinham sua origem justamente na politização no interior da instituição militar.
Com base nessas considerações, é mais apropriado interpretar a distensão como um sinal da impossibilidade dos militares de se manterem indefinidamente no poder. Porém, a distensão foi concebida de modo que a saída dos militares do governo não deveria ameaçar a ordem vigente e os interesses das classes dominantes.
De qualquer modo, no transcurso do mandato de Geisel, houve tentativas de golpe contra o governo, promovidas por setores militares radicais que se posicionaram contrariamente ao projeto de distensão. A maior ameaça ao projeto de redemocratização veio dos oficiais que controlavam o aparato de repressão policial-militar.
Violência e violação dos direitos humanos
Quando Geisel assumiu a presidência da República, em março de 1974, a ditadura militar já havia derrotado todas as organizações guerrilheiras armadas. Já não existia ameaça subversiva ao regime proveniente das esquerdas armadas, mas mesmo assim o aparato repressivo continuou funcionando.
O sucesso do projeto de liberalização política dependia em grande medida da contenção das atividades dos órgãos de repressão policial-militar. Não obstante, as tentativas do governo de conter a repressão esbarraram em reações articuladas de setores militares ligados aos órgãos repressivos.
Interessados na manutenção de suas prerrogativas, os órgãos de repressão continuaram a praticar ações violentas que geraram graves crises políticas chegando a ameaçar o mandato presidencial de Geisel.
Para evitar crises políticas, Geisel fez concessões ao aparato repressivo ao impedir pressões provenientes das oposições (em particular, do MDB, da Igreja Católica e também de setores da imprensa) no sentido de cobrar do governo esclarecimentos sobre cidadãos mortos, desaparecidos e torturas contra presos políticos.
Não obstante, em alguns episódios públicos de violações dos direitos humanos praticados pelos agentes dos órgãos de repressão, Geisel tomou medidas enérgicas contra militares radicais.
Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho
O episódio mais grave ocorrido no mandato de Geisel foi a morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975; no DOI-CODI do 2º. Exército em São Paulo. A morte de Herzog gerou uma grande comoção social de segmentos da classe média. Políticos da oposição, setores progressistas da Igreja católica, estudantes universitários e parte da imprensa se aliaram e realizaram um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, com a participação de milhares de pessoas.
Geisel nada fez neste caso para enquadrar e punir os responsáveis. Em janeiro de 1976, uma outra morte, a do operário Manoel Fiel Filho; em condições idênticas a de Herzog, fez com que Geisel destituísse do comando do 2º. Exército, general Ednardo D´Avilla Melo. A demissão representou a primeira ofensiva governamental contra os militares radicais.
Mas o episódio que garantiu a supremacia do presidente da República sobre os setores radicais que eram contrários ao projeto de liberalização ocorreu em outubro de 1977, com a demissão do ministro do Exército, general Silvio Frota, que pretendia se impor como próximo presidente da República.
Crise da economia
Em 1974, o ciclo de prosperidade da economia brasileira chegou ao fim. O grande salto desenvolvimentista e o crescimento industrial e produtivo (o chamado "milagre econômico") duraram enquanto as condições internacionais eram favoráveis.
Este ciclo se encerrou quando os empréstimos estrangeiros se tornaram mais escassos e quando o preço do petróleo aumentou significativamente. A crise agravou-se. Setores da burguesia industrial começaram a discordar dos rumos da política econômica. Em 1974, industriais paulistas lideraram a campanha pela desestatização da economia a fim de que os recursos que o governo destinava as empresas estatais fossem transferidos para o setor privado.
Também na área sindical, o aumento do custo de vida e a contenção dos salarios aumentaram o descontentamento dos trabalhadores. As greves estavam proibidas, o governo controlava os sindicatos e determinava os reajustes salariais. O aumento dos salários nunca acompanhava a inflação.
Neste contexto, o descontentamento dos trabalhadores foi se acumulando até que em 1978, os operários metalúrgicos da região do ACBD paulista, desencadearam o maior ciclo grevista da história do país. Não havia mais possibilidade de o governo conter as reivindicações dos trabalhadores e as exigências dos industriais.
Reorganização das oposições
No transcurso do governo Geisel, diversos setores da sociedade brasileira começaram a se reorganizar e se opor frontalmente à ditadura. O primeiro sinal de descontentamento popular ocorreu com a vitória expressiva do MDB nas eleições legislativas de novembro de 1974.
Com 72% dos votos válidos, o MDB conseguiu eleger 16 senadores, e aumentar sua bancada na Câmara Federal de 87 para 160 deputados. A vitória política do MDB, mesmo em condições de ausência de regras democráticas, deixou claro que - se o processo eleitoral fosse livre - a oposição conquistaria o poder.
Para evitar que o MDB avançasse nesta direção, em abril de 1977 o governo editou o Pacote de Abril que alterava, entre outras coisas, as regras eleitorais em benefício do governo.
Movimento estudantil
Outro importante setor oposicionista se originou do movimento estudantil. A partir de 1975, os estudantes universitários começaram a reconstruir as entidades e organizações estudantis representativas. Até 1976, as atividades e manifestações estudantis se mantiveram restrita ao interior das universidades. A partir de 1977, porém, os estudantes sairam as ruas promovendo inúmeras passeatas, atos públicos e manifestações exigindo "liberdades democráticas".
Também devemos destacar a importante atuação da Igreja católica. Os setores progressistas do clero católico sempre incomodaram os governos dos generais. Em pleno governo Médici, influentes membros da hierarquia católica, como o cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns; e o bispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, entre outros, denunciaram publicamente casos de tortura, desaparecimento de cidadãos e prisões políticas.
No governo Geisel, a oposição de setores da hierarquia católica contra a ditadura militar cresceu significativamente. Já não era possível ao governo reprimir com desmesurada violência os movimentos oposicionistas que afloravam.
A sucessão presidencial
Quando Geisel demitiu o ministro do Exército, general Sylvio Frota, em outubro de 1977, o presidente reafirmou seu predomínio sobre os setores radicais das Forças Armadas que não desejavam a redemocratização do país.
Para sucedê-lo na presidência da República, Geisel escolheu o general João Batista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), comprometido com o projeto de liberalização política. Figueiredo prosseguiu com a abertura política e redemocratização do país.
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