Relacionamento complexo de duas civilizações
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação
Por ocasião da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 22 de abril de 1500, estima-se que o território brasileiro fosse habitado por 5 milhões de índios. Em sua imensa maioria pertenciam às nações tupi - que predominavam no litoral, do Ceará a Cananéia (SP) - e guarani, que viviam no litoral sul e também no interior, em especial nas bacias dos rios Paraná e Paraguai.
Havia ainda outras tribos menores e dispersas, que os próprios tupis chamavam genericamente de tapuias, que quer dizer falantes de outras línguas.
O conhecimento do modo de vida do índio no século 16 chega a ser bastante detalhado, não só devido às pesquisas arqueológicas e antropológicas, mas aos relatos de viajantes que conviveram com eles. Entre esses relatos, destacam-se os do alemão Hans Staden e do francês Jean de Lery.
Primeiros contatos
O contato inicial entre brancos e índios foi amistoso, como se pode ver, por exemplo, na carta de Pero Vaz de Caminha, onde o escrivão narra momentos de descontração e festa entre as duas raças. Na verdade, esse contato amigável se estendeu pelas três ou quatro primeiras décadas de colonização. De um lado, os brancos estavam em franca minoria e precisavam dos índios para conseguir seus objetivos: basicamente extrair pau-brasil.
Os índios não só os ajudavam a localizar as árvores como a abatê-las e carregar os navios. Em troca, recebiam dos brancos não somente os colares de contas e espelhinhos que se tornaram um lugar-comum em muitos livros de história, mas também e principalmente ferramentas: facões, machados, enxadas. Estes sim eram os objetos que os índios queriam receber.
Para isso - acredite se quiser - há relatos da época que dão conta de índios que, ao verem uma caravela, mergulhavam no mar e nadavam até ela para propor negócios. Essa situação mudou por completo, à medida que o comércio de pau-brasil cedeu lugar ao cultivo de cana-de-açúcar, como principal fonte de riqueza proveniente do território brasileiro para os portugueses, basicamente a partir da segunda metade do século 16.
Posse da terra e conflitos
Nesse momento, os homens brancos passaram a vir em maior quantidade para o país e seu objetivo era tomar posse das terras. O índio passou, então, a ser visto de outra maneira: ele era, ao mesmo tempo, um obstáculo à posse e uma fonte de mão de obra escrava. A relação com os índios passou a ser conflituosa e, praticamente, em todos os locais de colonização se desencadearam guerras entre os índios e os brancos.
Se os índios ganharam alguns combates, por outro lado, os portugueses ganharam a guerra. Primeiro, por contarem com o recurso de uma tecnologia bélica superior, não só no que se refere a escudos, espadas, armaduras e elmos, mas principalmente às armas de fogo.
Para os indígenas, então, em vez de enfrentar os brancos, era mais prático refugiar-se no interior, onde o avanço do inimigo foi muito mais lento, estendendo-se ao longo dos séculos. No oeste paulista, por exemplo, os pioneiros plantadores de café disputaram terras com os índios caingangues ainda na segunda metade do século 19. Conflitos entre garimpeiros e índios continuam a existir em regiões específicas do Brasil no século 21.
Doenças epidêmicas e escravidão
Voltando, porém, ao primeiro século de colonização, é importante lembrar que outra "arma" do homem branco em sua luta contra o índio foram as doenças epidêmicas as quais este desconhecia e, portanto, não dispunha de imunidade contra elas. Cartas do missionário José de Anchieta dão conta de epidemias de varíola que fulminaram 30 mil índios.
Quanto à questão da escravidão indígena, é interessante notar que ela não conseguiu se firmar também por motivos culturais. O índio estava acostumado ao trabalho, mas não ao trabalho regrado e sistemático que a agricultura exige, por isso ele resistia a esse trabalho como não resistiu à extração de pau-brasil.
A questão da escravização dos índios também levanta outro aspecto polêmico da relação entre o índio e o branco, ou melhor, da relação entre o índio e os missionários jesuítas que vinham aqui com a missão de cristianizá-los. Não há dúvida de que os jesuítas, ao catequisarem os índios, destruíam sua cultura original.
Por outro lado, os jesuítas se ergueram contra a escravidão indígena e enfrentaram os colonizadores com os meios (religiosos) de que dispunham para isso. São célebres, por exemplo, alguns sermões do padre Antônio Vieira - um dos maiores escritores barrocos em língua portuguesa - contra a escravização dos índios no Maranhão.
Julgamento da história
Nos dias de hoje, considera-se politicamente correto apresentar os colonizadores e os missionários como destruidores de uma civilização. A questão, porém, é muito mais complexa e fazer um julgamento moral dos acontecimentos históricos obrigaria o estudioso a tentar examinar os fatos por uma perspectiva mais ampla, considerando sobretudo que o conflito entre civilizações foi e ainda é uma constante da história universal.
Mais ainda: considerando que é impossível que as circunstâncias históricas deixassem de ser como efetivamente foram. Não existe um passado alternativo nem existem alternativas para o passado.
Isso não significa eximir ninguém de responsabilidades, mas uma coisa é julgar criminosos de guerra, como os oficiais que comandavam e administravam os campos de extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou Pol Pot - o ditador comunista cambojano que exterminou cerca de 1,5 milhão de pessoas do seu próprio povo em 1975.
Outra coisa é julgar as ações dos europeus do século 16 na América, no estágio civilizatório em que esses próprios europeus se encontravam. Convém lembrar que nessa época, por toda a Europa ocidental, eram vários os sangrentos conflitos entre católicos e protestantes.
Brancos e índios hoje
Da mesma maneira, é completamente diferente julgar as relações atuais entre brancos e índios no Brasil. Nós, brasileiros, herdeiros de brancos, negros e índios, temos responsabilidades para com os índios - grande parte delas definidas por leis.
Daí a existência de uma organização como a Funai - Fundação Nacional do Índio que tem o dever de demarcar, assegurar e proteger as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimular o desenvolvimento de estudos e levantamentos sobre os grupos indígenas.
A Funai tem, também, que defender as comunidades indígenas, de despertar o interesse da sociedade nacional pelos índios e suas causas, gerir o seu patrimônio e fiscalizar as suas terras, impedindo as ações predatórias de garimpeiros, posseiros, madeireiros e quaisquer outras que ocorram dentro de seus limites e que representem um risco à vida e à preservação desses povos.
Segundo a Funai, existem atualmente no Brasil 345 mil índios, de cerca de 250 etnias, distribuídos por todo o território nacional, além de indícios da existência de 53 grupos jamais contatados pelo homem branco. A Fundação aponta também que há cerca de 190 mil índios vivendo em áreas urbanas.
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