Nadir Costa
O documento abaixo é uma das várias versões existentes de uma carta endereçada ao presidente norte-americano, Franklin Pierce, pelo chefe da tribo Suquamish, Seattle sobre uma oferta de compra do território de sua tribo feita pelo governo dos Estados Unidos.
Sempre utilizada por ambientalistas, a carta e talvez até as palavras do chefe nunca tenham sido ditas. São várias as objeções levantadas sobre a autenticidade da carta. Entre elas está a parte onde o chefe fala da matança dos búfalos feita por brancos que atiravam dos trens. No entanto, pesquisadores afirmam que Seattle nunca poderia ter visto um búfalo em sua região e muito menos um trem.
Uma outra objeção é que para a carta ter chegado ao presidente, ela deveria seguir uma formalidade burocrática, e não existe registro dessa carta em nenhuma repartição responsável pelos assuntos indígenas.
Outros historiadores defendem a autenticidade da carta a partir de sua primeira versão, publicada em 1887, pelo Dr. Henry Smith que transcreveu as palavras de Seattle quando do seu encontro com Isaac Stevens, comissário para negócios indígenas em 9 de dezembro de 1854. No entanto, outras testemunhas do evento, não lembram desse momento de tanta eloqüência por parte do chefe Seattle.
"Como podeis comprar ou vender o céu, a tepidez do chão? A idéia não tem sentido para nós. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, com podeis querer comprá-los? Qualquer parte desta terra é sagrada para meu povo. Qualquer folha, pinheiro, qualquer praia, a neblina dos bosques sombrios, o brilhante e zumbidor inseto, tudo é sagrado na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o interior das árvores leva em si as memórias do homem vermelho.
Os mortos do homem branco esquecem a terra de seu nascimento quando vão pervagar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta terra maravilhosa, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós.
As flores perfumosas são nossas irmãs; os gamos, os cavalos, a majestosa águia, todos são nossos irmãos. Os picos rochosos, a fragrância dos bosques, a energia vital do pônei e o homem, tudo pertence a uma só família.
Assim, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossas terras, ele está pedindo muito de nós. O Grande Chefe diz que nos reservará um sítio onde possamos viver confortavelmente por nós mesmos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Se é assim, vamos considerar a sua proposta sobre a compra de nossa terra. Mas tal compra não será fácil, já que esta terra é sagrada para nós.
A límpida água que percorre os regatos não é apenas água, mas o sangue de nossos ancestrais. Se vos vendermos a terra, tereis de vos lembrar que ela é sagrada, e deveis lembrar a vossos filhos que ela é sagrada, e que cada reflexo espectral sobre a superfície dos lagos evoca eventos e fases da vida de meu povo.
O marulhar das águas é a voz de nossos ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, eles nos saciam a sede. Levam as nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se vendermos nossa terra a vós, deveis vos lembrar e ensinar a vossas crianças que os rios são nossos irmãos, vossos irmãos também, e deveis a partir de então dispensar aos rios a mesma espécie de afeição que dispensais a um irmão.
Nós sabemos que o homem branco não entende nosso modo de ser. Para ele um pedaço de terra não se distingue de outro qualquer, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, ele vai embora, à procura de outro lugar. Deixa atrás de si a sepultura de seus pais e não se importa. A cova de seus pais é a herança de seus filhos, ele os aquece. Trata a sua mãe, a terra, e a seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas ou roubadas, como se fossem peles de carneiro ou brilhantes contas sem valor.
Seu apetite vai exaurir a terra, deixando atrás de si só desertos.
Isso eu não compreendo. Nosso modo de ser é completamente diferente do vosso. A visão de vossas cidades faz doer aos olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e como tal nada possa compreender.
Nas cidades do homem branco não há um só lugar onde haja silêncio, paz. Um só lugar onde ouvir o farfalhar das folhas na primavera, o zunir das asas de um inseto. Talvez seja porque sou um selvagem e não possa compreender.
O barulho serve apenas para insultar os ouvidos. E que vida é essa onde o homem não pode ouvir o pio solitário da coruja ou o coaxar das rãs à margem dos charcos à noite? O índio prefere o suave sussurrar do vento esfrolando a superfície das águas do lago, ou a fragrância da brisa purificada pela chuva do meio-dia ou aromatizada pelo perfume das pinhas.
O ar é precioso para o homem vermelho, pois deles todos se alimentam. Os animais, as árvores, o homem, todos respiram o mesmo ar. O homem branco parece não se importar com o ar que respira. Como um cadáver em decomposição, ele é insensível ao mau cheiro. Mas se vos vendermos nossa terra, deveis vos lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar insufla seu espírito em todas as coisas que dele vivem. O ar que nossos avós inspiraram ao primeiro vagido foi o mesmo que lhes recebeu o último suspiro.
Se vendermos nossa terra a vós, vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa ir sorver a brisa aromatizada pelas flores dos bosques.
Assim consideraremos vossa proposta de comprar nossa terra. Se nos decidirmos a aceitá-la, farei uma condição: o homem branco terá que tratar os animais dessa terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e não compreendo outro modo. Tenho visto milhares de búfalos apodrecerem nas pradarias, deixados pelo homem branco que neles atira de um trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como o fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante que o búfalo, que nós caçamos apenas para nos mantermos vivos.
Que será dos homens sem os animais? Se todos os animais desaparecessem, o homem morreria de solidão de espiritual. Porque tudo que aconteça aos animais, pode afetar os homem. Tudo está relacionado.
Deveis ensinar a vossos filhos que o chão onde pisam simboliza as cinzas de nossos ancestrais. Para que eles respeitem a terra, ensinai a eles o que ensinamos aos nossos: que a terra é nossa mãe. Quando o homem cospe sobre a terra está cuspindo sobre si mesmo.
De uma coisa temos certeza: a terra não pertence ao homem branco; o homem branco é que pertence à terra. Disso temos certeza. Todas as coisa estão relacionadas como o sangue que une uma família. Tudo está associado.
O que fere a terra, fere também os filhos da terra. O homem não tece a teia da vida; é antes um de seus fios. O que quer que faça a essa teia, faz a si próprio.
Mesmo o homem branco, a quem Deus acompanha, e com quem conversa como amigo, não pode fugir a esse destino comum. Talvez, apesar de tudo, sejamos todos irmãos. Nós o veremos. De uma coisa sabemos - e talvez o homem branco venha a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Podeis pensar hoje que somente vós possuis, como desejais possuir a terra, mas não podeis. Ele é o Deus do homem, e sua compaixão é igual tanto para o homem branco, quanto para o homem vermelho. Esta terra é querida d'Ele, e ofender a terra é insultar o seu Criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo do que todas as outras tribos. Contaminai a vossa camas, e vos sufocarei numa noite no meio de vosso próprios excrementos. Mas no vosso parecer, brilhareis alto, iluminados pela força do Deus que vos trouxe a esta terra e por algum favor especial vos outorgou domínio sobre ela e sobre o homem vermelho. Este destino é um mistério para nós pois não compreendemos como será no dia em que o último búfalo for dizimado, os cavalos selvagens domesticados, os secretos recantos das florestas invadidos pelo odor do suor de muitos homens e a visão da brilhantes colinas bloqueadas por fios falantes. Onde está o matagal? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. O fim do viver e o início do sobreviver."
Bibliografia PINSKY, Jaime e outros (org.). História da América através de textos. 3. ed. São Paulo: Contexto, 1991. p.37-41
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