República deve garantir o bem comum
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Reprodução
Alegoria da República, de Antoine Gros, artista francês do século 19
O termo república tem vários significados. Desde a Antigüidade clássica, passando pela Idade Média e chegando à modernidade, a palavra vem sendo empregada para classificar tipos de Estado, tipos de governo ou formas de organização do poder político.
As origens históricas do termo remontam à Roma antiga. Foi o orador, escritor e pensador político romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) quem pela primeira vez formulou o conceito de res publica. Cícero vivenciou um período da história de Roma marcado por inúmeros conflitos sociais e políticos, provocados pela luta dos grupos sociais em torno do poder governamental. Muitos de seus escritos foram diretamente influenciados pela situação política de Roma.
A res publica de Cícero
De acordo com o conceito ciceroniano, res publica serve para indicar o princípio subjacente ao povo ou a uma comunidade que habita um território comum. Assim, o "bem" ou "interesse comum" deve ser concretizado no âmbito da ação política. O bem comum representa o que é público, ou seja, pertencente a todos em comum, em contraposição aos interesses particulares próprios da vida privada ou doméstica.
O conceito de res publica formulado por Cícero se compõe de princípios idealistas e/ou utópicos. Cícero não se importava com as formas de governo, mas sim com o princípio norteador que deveria guiar o governante, ou seja, o bem comum. Na perspectiva ciceroniana, não importa se o governo assume a forma de monarquia (poder de um só homem; neste caso, o rei), aristocracia (poder de um grupo de homens) ou democracia (poder do povo).
Para Cícero, o governo ideal ou justo é aquele que respeita a lei (ou um conjunto de leis) em conformidade com o interesse e bem comum. Ele contrapunha a república não à monarquia, à aristocracia ou à democracia, mas aos governos considerados injustos, ou seja, aqueles que não se guiavam pelo bem comum. Assimilando o conceito de res publica ciceroniano, Santo Agostinho (354-430 d.C.) denominará os governos injustos de magna latrocinia.
A res publica medieval
Na Idade Média, o termo res publica foi empregado com o significado original que tinha na Antigüidade. Os termos civitas, communitas e populus serviam para diferenciar a organização do poder que englobava o vasto território europeu que ficou sob domínio do Império e da Igreja católica.
O termo res publica (ou respublica) foi empregado para designar a ordem política e a unidade da sociedade cristã sob coordenação dos dois poderes universais: a Igreja católica e o Império, ambos considerados na época emanação da vontade de Deus para manter a paz e a justiça entre os homens.
A república moderna
A transição da Idade Média para a Idade Moderna foi marcada pela ascensão das monarquias nacionais européias, que assumiram forma política definitiva e duradoura nos Estados absolutistas. Ocorreu então a secularização do termo res publica, passando a ser mais utilizada a palavra "república".
O conceito de república se modifica porque passa a ser empregado para caracterizar as novas formas de organização do poder político. Porém, no período moderno, a clássica distinção entre monarquia, aristocracia e democracia é substituída pela tríade monarquia, república (podendo ser aristocrática ou democrática) e despotismo. Os pensadores Maquiavel e Montesquieu foram os principais expoentes do novo conceito de república.
Formas de poder
As principais características ou fatores que distinguem as formas de organização do poder no período moderno são de ordem qualitativa. Com relação às leis: numa república as leis são expressões da vontade popular, enquanto na monarquia expressam a vontade do rei (muitas vezes em conformidade com a tradição e o costume vigente). No despotismo, o governante exerce o poder por meio de leis e decretos ocasionais e improvisados em cada ocasião.
Em relação à integração social, numa república é a "virtude" que leva os cidadãos a privilegiarem o bem do Estado em detrimento do interesse particular. Na monarquia, é o senso de honra da nobreza hereditária e, no despotismo, é o medo diante da ameaça da violência repressiva que paralisa os súditos.
Em relação ao surgimento da ordem política, na república ela nasce de baixo (da vontade do povo); na monarquia ela surge do alto por iniciativa do rei, mas em consonância com a tradição e o costume vigente; no despotismo, a ordem política é imposta pela força do tirano.
Novos significados
Após as grandes revoluções burguesas ocorridas na Europa nos séculos 17, 18 e 19, as monarquias absolutistas entraram em colapso (caso da França) ou se modificaram pela constitucionalização do poder político. Esse é o caso da Inglaterra, com a adoção da monarquia parlamentarista, que fez com que o governo deixasse de ser expressão de um só mandatário.
Assim, o termo república perdeu o significado que tinha no início do período moderno. Surgiram então dois tipos de república: presidencialista e parlamentarista. Nos dois, o poder político governamental se encontra dividido entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Em cada caso, porém, a relação de autonomia e a amplitude de atuação entre tais poderes governamentais é bastante distinta.
*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia-política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro "Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política - 1972-1985".
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