Forma de exercício do poder altera relações sociais
O termo hegemonia deriva do grego egemonía, que significa "direção suprema". Foi com esse significado que os estudiosos da política empregaram o termo, para indicar a supremacia de um Estado-nação soberano sobre os demais Estados que integram o sistema internacional.
Portanto, o Estado que detém a hegemonia exerce sobre as demais nações (ou influência, baseada sobretudo no poderio militar, empregando como recurso a intimidação e coação.
Os Estados hegemônicos detêm elevado grau de proeminência econômica e cultural, elementos que, ao lado do poderio militar, ajudam na sustentação de uma posição hegemônica.
A perspectiva marxista
Os pensadores, filósofos e intelectuais de tradição marxista também consideram o conceito de hegemonia muito apropriado para a análise das relações internacionais.
No marxismo, o termo hegemonia é empregado de modo mais recorrente na análise das relações entre as classes sociais, no intuito de desvelar a dominação ou hegemonia que uma classe social (a classe dominante) exerce sobre as demais, valendo-se de recursos políticos baseados no emprego da coação (ou seja, uso da força) e/ou ideológicos, baseados em recursos culturais, morais e intelectuais.
Nesse aspecto, a hegemonia baseada em recursos ideológicos têm maiores chances de ser assimilada pelos indivíduos e tem grande vantagem em relação ao uso de recursos políticos baseados na coação.
12 de junho de 2009
Golpe de Estado
Diferença entre golpe e revolução
É uma tentativa de substituição das autoridades políticas existentes, sem maiores pretensões de realizar mudanças profundas nas relações políticas, sociais e econômicas.Esses movimentos golpistas de modo geral são realizados por grupos ou setores sociais que integram a elite dominante da sociedade.
Os movimentos golpistas procuram caracterizar o movimento de tomada do poder como um ato revolucionário. Isto porque, um movimento revolucionário tem um forte efeito simbólico e ideológico para o conjunto da sociedade. Já o golpe de Estado, além de ser uma iniciativa de poucos indivíduos, é considerado uma ilegalidade.
É uma tentativa de substituição das autoridades políticas existentes, sem maiores pretensões de realizar mudanças profundas nas relações políticas, sociais e econômicas.Esses movimentos golpistas de modo geral são realizados por grupos ou setores sociais que integram a elite dominante da sociedade.
Os movimentos golpistas procuram caracterizar o movimento de tomada do poder como um ato revolucionário. Isto porque, um movimento revolucionário tem um forte efeito simbólico e ideológico para o conjunto da sociedade. Já o golpe de Estado, além de ser uma iniciativa de poucos indivíduos, é considerado uma ilegalidade.
Formas de poder
República deve garantir o bem comum
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Reprodução
Alegoria da República, de Antoine Gros, artista francês do século 19
O termo república tem vários significados. Desde a Antigüidade clássica, passando pela Idade Média e chegando à modernidade, a palavra vem sendo empregada para classificar tipos de Estado, tipos de governo ou formas de organização do poder político.
As origens históricas do termo remontam à Roma antiga. Foi o orador, escritor e pensador político romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) quem pela primeira vez formulou o conceito de res publica. Cícero vivenciou um período da história de Roma marcado por inúmeros conflitos sociais e políticos, provocados pela luta dos grupos sociais em torno do poder governamental. Muitos de seus escritos foram diretamente influenciados pela situação política de Roma.
A res publica de Cícero
De acordo com o conceito ciceroniano, res publica serve para indicar o princípio subjacente ao povo ou a uma comunidade que habita um território comum. Assim, o "bem" ou "interesse comum" deve ser concretizado no âmbito da ação política. O bem comum representa o que é público, ou seja, pertencente a todos em comum, em contraposição aos interesses particulares próprios da vida privada ou doméstica.
O conceito de res publica formulado por Cícero se compõe de princípios idealistas e/ou utópicos. Cícero não se importava com as formas de governo, mas sim com o princípio norteador que deveria guiar o governante, ou seja, o bem comum. Na perspectiva ciceroniana, não importa se o governo assume a forma de monarquia (poder de um só homem; neste caso, o rei), aristocracia (poder de um grupo de homens) ou democracia (poder do povo).
Para Cícero, o governo ideal ou justo é aquele que respeita a lei (ou um conjunto de leis) em conformidade com o interesse e bem comum. Ele contrapunha a república não à monarquia, à aristocracia ou à democracia, mas aos governos considerados injustos, ou seja, aqueles que não se guiavam pelo bem comum. Assimilando o conceito de res publica ciceroniano, Santo Agostinho (354-430 d.C.) denominará os governos injustos de magna latrocinia.
A res publica medieval
Na Idade Média, o termo res publica foi empregado com o significado original que tinha na Antigüidade. Os termos civitas, communitas e populus serviam para diferenciar a organização do poder que englobava o vasto território europeu que ficou sob domínio do Império e da Igreja católica.
O termo res publica (ou respublica) foi empregado para designar a ordem política e a unidade da sociedade cristã sob coordenação dos dois poderes universais: a Igreja católica e o Império, ambos considerados na época emanação da vontade de Deus para manter a paz e a justiça entre os homens.
A república moderna
A transição da Idade Média para a Idade Moderna foi marcada pela ascensão das monarquias nacionais européias, que assumiram forma política definitiva e duradoura nos Estados absolutistas. Ocorreu então a secularização do termo res publica, passando a ser mais utilizada a palavra "república".
O conceito de república se modifica porque passa a ser empregado para caracterizar as novas formas de organização do poder político. Porém, no período moderno, a clássica distinção entre monarquia, aristocracia e democracia é substituída pela tríade monarquia, república (podendo ser aristocrática ou democrática) e despotismo. Os pensadores Maquiavel e Montesquieu foram os principais expoentes do novo conceito de república.
Formas de poder
As principais características ou fatores que distinguem as formas de organização do poder no período moderno são de ordem qualitativa. Com relação às leis: numa república as leis são expressões da vontade popular, enquanto na monarquia expressam a vontade do rei (muitas vezes em conformidade com a tradição e o costume vigente). No despotismo, o governante exerce o poder por meio de leis e decretos ocasionais e improvisados em cada ocasião.
Em relação à integração social, numa república é a "virtude" que leva os cidadãos a privilegiarem o bem do Estado em detrimento do interesse particular. Na monarquia, é o senso de honra da nobreza hereditária e, no despotismo, é o medo diante da ameaça da violência repressiva que paralisa os súditos.
Em relação ao surgimento da ordem política, na república ela nasce de baixo (da vontade do povo); na monarquia ela surge do alto por iniciativa do rei, mas em consonância com a tradição e o costume vigente; no despotismo, a ordem política é imposta pela força do tirano.
Novos significados
Após as grandes revoluções burguesas ocorridas na Europa nos séculos 17, 18 e 19, as monarquias absolutistas entraram em colapso (caso da França) ou se modificaram pela constitucionalização do poder político. Esse é o caso da Inglaterra, com a adoção da monarquia parlamentarista, que fez com que o governo deixasse de ser expressão de um só mandatário.
Assim, o termo república perdeu o significado que tinha no início do período moderno. Surgiram então dois tipos de república: presidencialista e parlamentarista. Nos dois, o poder político governamental se encontra dividido entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Em cada caso, porém, a relação de autonomia e a amplitude de atuação entre tais poderes governamentais é bastante distinta.
*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia-política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro "Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política - 1972-1985".
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Reprodução
Alegoria da República, de Antoine Gros, artista francês do século 19
O termo república tem vários significados. Desde a Antigüidade clássica, passando pela Idade Média e chegando à modernidade, a palavra vem sendo empregada para classificar tipos de Estado, tipos de governo ou formas de organização do poder político.
As origens históricas do termo remontam à Roma antiga. Foi o orador, escritor e pensador político romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) quem pela primeira vez formulou o conceito de res publica. Cícero vivenciou um período da história de Roma marcado por inúmeros conflitos sociais e políticos, provocados pela luta dos grupos sociais em torno do poder governamental. Muitos de seus escritos foram diretamente influenciados pela situação política de Roma.
A res publica de Cícero
De acordo com o conceito ciceroniano, res publica serve para indicar o princípio subjacente ao povo ou a uma comunidade que habita um território comum. Assim, o "bem" ou "interesse comum" deve ser concretizado no âmbito da ação política. O bem comum representa o que é público, ou seja, pertencente a todos em comum, em contraposição aos interesses particulares próprios da vida privada ou doméstica.
O conceito de res publica formulado por Cícero se compõe de princípios idealistas e/ou utópicos. Cícero não se importava com as formas de governo, mas sim com o princípio norteador que deveria guiar o governante, ou seja, o bem comum. Na perspectiva ciceroniana, não importa se o governo assume a forma de monarquia (poder de um só homem; neste caso, o rei), aristocracia (poder de um grupo de homens) ou democracia (poder do povo).
Para Cícero, o governo ideal ou justo é aquele que respeita a lei (ou um conjunto de leis) em conformidade com o interesse e bem comum. Ele contrapunha a república não à monarquia, à aristocracia ou à democracia, mas aos governos considerados injustos, ou seja, aqueles que não se guiavam pelo bem comum. Assimilando o conceito de res publica ciceroniano, Santo Agostinho (354-430 d.C.) denominará os governos injustos de magna latrocinia.
A res publica medieval
Na Idade Média, o termo res publica foi empregado com o significado original que tinha na Antigüidade. Os termos civitas, communitas e populus serviam para diferenciar a organização do poder que englobava o vasto território europeu que ficou sob domínio do Império e da Igreja católica.
O termo res publica (ou respublica) foi empregado para designar a ordem política e a unidade da sociedade cristã sob coordenação dos dois poderes universais: a Igreja católica e o Império, ambos considerados na época emanação da vontade de Deus para manter a paz e a justiça entre os homens.
A república moderna
A transição da Idade Média para a Idade Moderna foi marcada pela ascensão das monarquias nacionais européias, que assumiram forma política definitiva e duradoura nos Estados absolutistas. Ocorreu então a secularização do termo res publica, passando a ser mais utilizada a palavra "república".
O conceito de república se modifica porque passa a ser empregado para caracterizar as novas formas de organização do poder político. Porém, no período moderno, a clássica distinção entre monarquia, aristocracia e democracia é substituída pela tríade monarquia, república (podendo ser aristocrática ou democrática) e despotismo. Os pensadores Maquiavel e Montesquieu foram os principais expoentes do novo conceito de república.
Formas de poder
As principais características ou fatores que distinguem as formas de organização do poder no período moderno são de ordem qualitativa. Com relação às leis: numa república as leis são expressões da vontade popular, enquanto na monarquia expressam a vontade do rei (muitas vezes em conformidade com a tradição e o costume vigente). No despotismo, o governante exerce o poder por meio de leis e decretos ocasionais e improvisados em cada ocasião.
Em relação à integração social, numa república é a "virtude" que leva os cidadãos a privilegiarem o bem do Estado em detrimento do interesse particular. Na monarquia, é o senso de honra da nobreza hereditária e, no despotismo, é o medo diante da ameaça da violência repressiva que paralisa os súditos.
Em relação ao surgimento da ordem política, na república ela nasce de baixo (da vontade do povo); na monarquia ela surge do alto por iniciativa do rei, mas em consonância com a tradição e o costume vigente; no despotismo, a ordem política é imposta pela força do tirano.
Novos significados
Após as grandes revoluções burguesas ocorridas na Europa nos séculos 17, 18 e 19, as monarquias absolutistas entraram em colapso (caso da França) ou se modificaram pela constitucionalização do poder político. Esse é o caso da Inglaterra, com a adoção da monarquia parlamentarista, que fez com que o governo deixasse de ser expressão de um só mandatário.
Assim, o termo república perdeu o significado que tinha no início do período moderno. Surgiram então dois tipos de república: presidencialista e parlamentarista. Nos dois, o poder político governamental se encontra dividido entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Em cada caso, porém, a relação de autonomia e a amplitude de atuação entre tais poderes governamentais é bastante distinta.
*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia-política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro "Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política - 1972-1985".
Feminismo
Movimento surgiu na Revolução Francesa
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
É possível encontrar na historiografia dos séculos 15 e 18 o aparecimento de temas dedicados à denúncia da condição de opressão das mulheres, tendo como principais fatores a superioridade e a dominação imposta pelos homens.
Porém, ainda não se pode atribuir aos mais variados escritos que surgiram nesse período o rótulo ou o conceito de "feminista". Por outro lado, os estudiosos do tema creditam ao contexto social e político da Revolução Francesa (1789) - e, portanto, do Iluminismo - o surgimento do feminismo moderno.
Em 1791, por exemplo, a revolucionária Olímpia de Gouges compôs uma célebre declaração, proclamando que a mulher possuía direitos naturais idênticos aos dos homens e que, por essa razão, tinha o direito de participar, direta ou indiretamente, da formulação das leis e da política em geral. Embora tenha sido rejeitada pela Convenção, a declaração de Gouges é o símbolo mais representativo do feminismo racionalista e democrático que reivindicava igualdade política entre os gêneros masculino e feminino.
Feminismo emancipacionista
No século 19, o feminismo teve um novo recomeço, em um contexto diferente: o da sociedade liberal européia que emergia.
O núcleo irradiador do feminismo emancipacionista foi a Inglaterra, e a luta centrava-se na obtenção de igualdade jurídica (direito de voto, de instrução, de exercer uma profissão ou poder trabalhar). O aparecimento do feminismo emancipacionista está associado às contradições que permeavam a sociedade liberal da época, onde as leis em vigor formalizavam juridicamente as diferenças entre os sexos masculino e feminino.
Os escritos do pensador inglês Stuart Mill ganharam destaque ao propor o princípio geral de emancipação das mulheres a partir da abolição das desigualdades no núcleo familiar, da admissão das mulheres em todos os postos de trabalho e da oferta de instrução educacional do mesmo nível que estava ao alcance dos homens.
No transcurso do século 19 e início do século 20, vários pensadores e intelectuais europeus retomaram os pressupostos doutrinários de Stuart Mill e formularam teses mais consistentes sobre o feminismo. Na Itália, o debate travado entre os intelectuais de esquerda foi mais intenso e produziu maior número de livros e obras sobre o tema.
Feminismo contemporâneo
O movimento feminista contemporâneo surgiu nos Estados Unidos, na segunda metade da década de 1960, e se alastrou para diversos países industrializados entre 1968 e 1977.
A reivindicação central do movimento feminista contemporâneo é a luta pela "libertação" da mulher. O termo "libertação" deve ser entendido como uma afirmação da diferença da mulher, sobretudo em termos de alteridade. Com base nessa idéia, o movimento feminista busca novos valores, que possam auxiliar ou promover a transformação das relações sociais ou da sociedade como um todo.
Portanto, o surgimento do movimento feminista contemporâneo representou um divisor de águas e, ao mesmo tempo, a própria superação dos movimentos sociais emancipatórios, cuja reivindicação central estava baseada na luta pela igualdade (jurídica, política e econômica).
A luta pela "libertação" da mulher, que constitui o núcleo da doutrina feminista contemporânea, está baseada na denúncia da existência de uma opressão característica, com raízes profundas, que atinge todas as mulheres, pertencentes a diversas culturas, classes sociais, sistemas econômicos e políticos. E, também, na idéia de que essa opressão persiste, apesar da conquista dos direitos de igualdade (jurídicos, políticos e econômicos).
Desse modo, o movimento feminista contemporâneo atua com base numa perspectiva de superação das relações conflituosas entre os gêneros masculino e feminino, recusando, portanto, o estigma ou noção de "inferioridade" (ou desigualdade natural).
Uma outra característica do feminismo contemporâneo é a proeminência de intelectuais e líderes do sexo feminino. Esse fato positivo é reflexo das mudanças sociais, políticas e educativas que estiveram ao alcance dessa nova geração de mulheres que se projetaram como líderes feministas, entre as quais figuram Simone Beauvoir, Betty Friedan e Kate Millet.
O movimento feminista obteve muitas vitórias, tanto nos países industrializados (onde era mais forte) como nos países em desenvolvimento. O divórcio e o aborto foram dois temas que marcaram o movimento durante a década de 1970.
Entre o final da década de 1970 e início da de 1980, porém, o movimento feminista entrou em declínio, em razão das profundas transformações (sociais, políticas e econômicas) que atingiram as sociedades. Crises econômicas, o surgimento do narcotráfico, da violência e do terrorismo, com sérias ameaças à coesão social, foram temas que ganharam maior atenção do público e da cena política.
Não obstante, o feminismo avançou consideravelmente a partir da década de 1990, retomando a luta reivindicativa com base em novas demandas sociais.
*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política - 1972-1985.
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
É possível encontrar na historiografia dos séculos 15 e 18 o aparecimento de temas dedicados à denúncia da condição de opressão das mulheres, tendo como principais fatores a superioridade e a dominação imposta pelos homens.
Porém, ainda não se pode atribuir aos mais variados escritos que surgiram nesse período o rótulo ou o conceito de "feminista". Por outro lado, os estudiosos do tema creditam ao contexto social e político da Revolução Francesa (1789) - e, portanto, do Iluminismo - o surgimento do feminismo moderno.
Em 1791, por exemplo, a revolucionária Olímpia de Gouges compôs uma célebre declaração, proclamando que a mulher possuía direitos naturais idênticos aos dos homens e que, por essa razão, tinha o direito de participar, direta ou indiretamente, da formulação das leis e da política em geral. Embora tenha sido rejeitada pela Convenção, a declaração de Gouges é o símbolo mais representativo do feminismo racionalista e democrático que reivindicava igualdade política entre os gêneros masculino e feminino.
Feminismo emancipacionista
No século 19, o feminismo teve um novo recomeço, em um contexto diferente: o da sociedade liberal européia que emergia.
O núcleo irradiador do feminismo emancipacionista foi a Inglaterra, e a luta centrava-se na obtenção de igualdade jurídica (direito de voto, de instrução, de exercer uma profissão ou poder trabalhar). O aparecimento do feminismo emancipacionista está associado às contradições que permeavam a sociedade liberal da época, onde as leis em vigor formalizavam juridicamente as diferenças entre os sexos masculino e feminino.
Os escritos do pensador inglês Stuart Mill ganharam destaque ao propor o princípio geral de emancipação das mulheres a partir da abolição das desigualdades no núcleo familiar, da admissão das mulheres em todos os postos de trabalho e da oferta de instrução educacional do mesmo nível que estava ao alcance dos homens.
No transcurso do século 19 e início do século 20, vários pensadores e intelectuais europeus retomaram os pressupostos doutrinários de Stuart Mill e formularam teses mais consistentes sobre o feminismo. Na Itália, o debate travado entre os intelectuais de esquerda foi mais intenso e produziu maior número de livros e obras sobre o tema.
Feminismo contemporâneo
O movimento feminista contemporâneo surgiu nos Estados Unidos, na segunda metade da década de 1960, e se alastrou para diversos países industrializados entre 1968 e 1977.
A reivindicação central do movimento feminista contemporâneo é a luta pela "libertação" da mulher. O termo "libertação" deve ser entendido como uma afirmação da diferença da mulher, sobretudo em termos de alteridade. Com base nessa idéia, o movimento feminista busca novos valores, que possam auxiliar ou promover a transformação das relações sociais ou da sociedade como um todo.
Portanto, o surgimento do movimento feminista contemporâneo representou um divisor de águas e, ao mesmo tempo, a própria superação dos movimentos sociais emancipatórios, cuja reivindicação central estava baseada na luta pela igualdade (jurídica, política e econômica).
A luta pela "libertação" da mulher, que constitui o núcleo da doutrina feminista contemporânea, está baseada na denúncia da existência de uma opressão característica, com raízes profundas, que atinge todas as mulheres, pertencentes a diversas culturas, classes sociais, sistemas econômicos e políticos. E, também, na idéia de que essa opressão persiste, apesar da conquista dos direitos de igualdade (jurídicos, políticos e econômicos).
Desse modo, o movimento feminista contemporâneo atua com base numa perspectiva de superação das relações conflituosas entre os gêneros masculino e feminino, recusando, portanto, o estigma ou noção de "inferioridade" (ou desigualdade natural).
Uma outra característica do feminismo contemporâneo é a proeminência de intelectuais e líderes do sexo feminino. Esse fato positivo é reflexo das mudanças sociais, políticas e educativas que estiveram ao alcance dessa nova geração de mulheres que se projetaram como líderes feministas, entre as quais figuram Simone Beauvoir, Betty Friedan e Kate Millet.
O movimento feminista obteve muitas vitórias, tanto nos países industrializados (onde era mais forte) como nos países em desenvolvimento. O divórcio e o aborto foram dois temas que marcaram o movimento durante a década de 1970.
Entre o final da década de 1970 e início da de 1980, porém, o movimento feminista entrou em declínio, em razão das profundas transformações (sociais, políticas e econômicas) que atingiram as sociedades. Crises econômicas, o surgimento do narcotráfico, da violência e do terrorismo, com sérias ameaças à coesão social, foram temas que ganharam maior atenção do público e da cena política.
Não obstante, o feminismo avançou consideravelmente a partir da década de 1990, retomando a luta reivindicativa com base em novas demandas sociais.
*Renato Cancian é cientista social, mestre em sociologia política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro Comissão Justiça e Paz de São Paulo: Gênese e Atuação Política - 1972-1985.
Controle social
Poder de regulação da sociedade é limitado
O conceito de controle social tem origem na sociologia americana da segunda década do século 20. Controle social pode ser concebido como um conjunto heterogêneo de recursos materiais e simbólicos disponíveis em uma sociedade para assegurar que os indivíduos se comportem de maneira previsível e de acordo com as regras e preceitos vigentes.
É possível identificar uma similaridade entre o conceito de controle social e alguns atributos do conceito de dominação, elaborado pelo cientista social alemão Max Weber.
Para entender melhor o conceito de controle social, basta pensar no quanto os recursos materiais, disponíveis na vida social, estão associados com os mecanismos institucionais, sobretudo as leis, que sancionam a conduta do indivíduo em sociedade e punem o desvio. E, também, no quanto os recursos simbólicos estão associados à esfera da cultura, que integra diversos mecanismos de socialização e aprendizagem que, quando bem-sucedidos, oferecem condições para as pessoas se comportarem de acordo com os valores coletivos, morais e éticos, prevalecentes na sociedade.
A partir desses pressupostos conceituais, a sociologia americana desenvolveu os primeiros estudos tendo como objeto de pesquisa os fenômenos da criminalidade em geral e da delinqüência juvenil (que são considerados desvios), bem como o fenômeno da assimilação de valores culturais pelos imigrantes e pelas minorias étnicas.
O fenômeno da interdependência social
A partir da década de 1940, porém, a sociologia americana agregou ao conceito de controle social elementos associados com o fenômeno da interdependência social.
A interdependência social pode ser entendida como uma série de vínculos de reciprocidade firmados entre os indivíduos que integram a sociedade. A natureza desses vínculos envolve princípios subjetivamente apreendidos pelos indivíduos, que agem em conformidade com as regras de conduta, reconhecendo-as como vantajosas para o desenvolvimento individual e social.
Desse modo, o controle social deixou de ser redutível a estímulos externos associados com a violência física (com base na aplicação das leis sancionadas) e com a coerção moral. Para ser eficaz e duradouro, portanto, o controle social exercido sobre os indivíduos que integram uma coletividade não pode ser apenas externo.
O fenômeno da interdependência social aponta para existência de relações sociais "recíprocas", firmadas com base na percepção objetiva que os indivíduos têm de integrarem um mesmo sistema social e se reconhecerem como dependentes entre si.
O fenômeno da interdependência social tem similaridade com alguns modelos sociológicos elaborados pelo cientista social francês Émile Durkheim.
Sob esse aspecto, o conceito durkeimiano de "solidariedade social" tem muitos elementos em comum com o fenômeno da interdependência social. As relações de mercado, por exemplo - ou seja, as relações de troca que são a base de um sistema econômico -, certamente representaram o objeto de investigação sociológica mais importante para a identificação do fenômeno da interdependência social.
Coesão social e desvio
A partir das considerações precedentes, fica demonstrado que o controle social desempenha um importante papel na sociedade ao assegurar a coesão social.
Evidentemente, por razões as mais variadas, podem ocorrer crises que afetem o completo e contínuo desempenho do controle social. Quando o comportamento desviante aumenta ou se torna preponderante é sinal de que alguns dos elementos constitutivos do controle social não estão funcionando de acordo com o esperado.
Não obstante, a sociologia contemporânea tem fornecido inúmeras indicações de que o controle social, embora seja permanente e necessariamente contínuo, nunca é total. Em outras palavras, o controle social é sempre limitado, porque uma sociedade não dispõe de mecanismos de controle capazes de atuar com a mesma intensidade - e nem mesmo capazes de abarcar todos os domínios da vida social.
Nenhuma comunidade dispõe de sanções sociais que assegurem a não-violação da totalidade das normas de conduta. Alguns domínios da vida social são, porém, mais críticos e sensíveis ao desvio, como, por exemplo, o da segurança social. Nesse caso, o controle social cumpre, primeiramente, a função de desestimular os comportamentos desviantes (existência das normas e garantia de aplicação da lei).
Quando desvios são constatados, o controle social é acionado para exercer sua segunda função, que se refere à punição por meio do emprego de variadas formas de interdição (o caso extremo é a detenção ou, em algumas sociedades, até mesmo a pena de morte).
A terceira função do controle social - em relação ao desvio criminal - refere-se ao isolamento e exclusão permanente do desviante da sociedade. Em certos casos, é possível, no entanto, restabelecer no desviante a conformação às normas através da ressocialização.
O conceito de controle social tem origem na sociologia americana da segunda década do século 20. Controle social pode ser concebido como um conjunto heterogêneo de recursos materiais e simbólicos disponíveis em uma sociedade para assegurar que os indivíduos se comportem de maneira previsível e de acordo com as regras e preceitos vigentes.
É possível identificar uma similaridade entre o conceito de controle social e alguns atributos do conceito de dominação, elaborado pelo cientista social alemão Max Weber.
Para entender melhor o conceito de controle social, basta pensar no quanto os recursos materiais, disponíveis na vida social, estão associados com os mecanismos institucionais, sobretudo as leis, que sancionam a conduta do indivíduo em sociedade e punem o desvio. E, também, no quanto os recursos simbólicos estão associados à esfera da cultura, que integra diversos mecanismos de socialização e aprendizagem que, quando bem-sucedidos, oferecem condições para as pessoas se comportarem de acordo com os valores coletivos, morais e éticos, prevalecentes na sociedade.
A partir desses pressupostos conceituais, a sociologia americana desenvolveu os primeiros estudos tendo como objeto de pesquisa os fenômenos da criminalidade em geral e da delinqüência juvenil (que são considerados desvios), bem como o fenômeno da assimilação de valores culturais pelos imigrantes e pelas minorias étnicas.
O fenômeno da interdependência social
A partir da década de 1940, porém, a sociologia americana agregou ao conceito de controle social elementos associados com o fenômeno da interdependência social.
A interdependência social pode ser entendida como uma série de vínculos de reciprocidade firmados entre os indivíduos que integram a sociedade. A natureza desses vínculos envolve princípios subjetivamente apreendidos pelos indivíduos, que agem em conformidade com as regras de conduta, reconhecendo-as como vantajosas para o desenvolvimento individual e social.
Desse modo, o controle social deixou de ser redutível a estímulos externos associados com a violência física (com base na aplicação das leis sancionadas) e com a coerção moral. Para ser eficaz e duradouro, portanto, o controle social exercido sobre os indivíduos que integram uma coletividade não pode ser apenas externo.
O fenômeno da interdependência social aponta para existência de relações sociais "recíprocas", firmadas com base na percepção objetiva que os indivíduos têm de integrarem um mesmo sistema social e se reconhecerem como dependentes entre si.
O fenômeno da interdependência social tem similaridade com alguns modelos sociológicos elaborados pelo cientista social francês Émile Durkheim.
Sob esse aspecto, o conceito durkeimiano de "solidariedade social" tem muitos elementos em comum com o fenômeno da interdependência social. As relações de mercado, por exemplo - ou seja, as relações de troca que são a base de um sistema econômico -, certamente representaram o objeto de investigação sociológica mais importante para a identificação do fenômeno da interdependência social.
Coesão social e desvio
A partir das considerações precedentes, fica demonstrado que o controle social desempenha um importante papel na sociedade ao assegurar a coesão social.
Evidentemente, por razões as mais variadas, podem ocorrer crises que afetem o completo e contínuo desempenho do controle social. Quando o comportamento desviante aumenta ou se torna preponderante é sinal de que alguns dos elementos constitutivos do controle social não estão funcionando de acordo com o esperado.
Não obstante, a sociologia contemporânea tem fornecido inúmeras indicações de que o controle social, embora seja permanente e necessariamente contínuo, nunca é total. Em outras palavras, o controle social é sempre limitado, porque uma sociedade não dispõe de mecanismos de controle capazes de atuar com a mesma intensidade - e nem mesmo capazes de abarcar todos os domínios da vida social.
Nenhuma comunidade dispõe de sanções sociais que assegurem a não-violação da totalidade das normas de conduta. Alguns domínios da vida social são, porém, mais críticos e sensíveis ao desvio, como, por exemplo, o da segurança social. Nesse caso, o controle social cumpre, primeiramente, a função de desestimular os comportamentos desviantes (existência das normas e garantia de aplicação da lei).
Quando desvios são constatados, o controle social é acionado para exercer sua segunda função, que se refere à punição por meio do emprego de variadas formas de interdição (o caso extremo é a detenção ou, em algumas sociedades, até mesmo a pena de morte).
A terceira função do controle social - em relação ao desvio criminal - refere-se ao isolamento e exclusão permanente do desviante da sociedade. Em certos casos, é possível, no entanto, restabelecer no desviante a conformação às normas através da ressocialização.
Comunismo
- Origens
Ideologia comunista remonta à Antigüidade
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
O comunismo é uma ideologia que prega a abolição da propriedade privada e o fim da luta de classes, além da construção de um regime político e econômico que possibilite o estabelecimento da igualdade e justiça social entre os homens.
Os filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) são apontados como os precursores das formulações teóricas e doutrinárias do comunismo. Historicamente, porém, as concepções e ideais de uma sociedade comunista remontam ao período da Antigüidade clássica. Nos séculos seguintes (que abrangem os períodos da Idade Média e Moderna), a ideologia comunista sofreu constantes reformulações.
Origens dos ideais comunistas
Os ideais comunistas floresceram no período da Antigüidade clássica a partir do pensamento do filósofo grego Platão (428 ou 427 a.C.). Em um de seus livros mais importantes, intitulado "A República", Platão concebe um modelo ideal de sociedade a partir da supressão da propriedade privada e da família.
De acordo com Platão, o fim da propriedade privada levaria ao fim do conflito entre o Estado (concebido como a manifestação do interesse público) e cada cidadão em particular (concebidos como a manifestação dos interesses privados). A abolição do núcleo familiar, por sua vez, teria como resultado uma maior devoção ao bem público.
Dessa forma, os vínculos matrimoniais deixariam de existir e o acasalamento entre homens e mulheres deveria ser temporário. Os filhos que nascessem deveriam desconhecer os pais e ficar sob cuidados permanentes do Estado, que proveria o sustento e a educação.
Paradoxalmente, os ideais comunistas platônicos não interferem nas diferenças de status existentes entre os cidadãos e não-cidadãos (classes inferiores, escravos) que coexistiam nas cidades-estados gregas. Em nenhum momento, no livro "A República", Platão questiona a emancipação dos escravos, que estão destinados a prover os meios de subsistência aos cidadãos gregos.
Comunismo e período medieval
Entre os séculos 12 e 15 apareceram algumas ideais comunistas baseados em pressupostos religiosos do cristianismo primitivo. Os cátaros (do grego kataroi, que significa "puro") e os valdenses (seguidores de Pierre Valdo, um rico comerciante francês que abandonou todos os seus bens) se constituíram em dissidências da Igreja Católica.
Em suas pregações, os adeptos desses grupos repudiavam a propriedade privada, exaltavam a pobreza e a necessidade de uma vida comunitária onde todos deveriam trabalhar e conviver igualitariamente.
O abade Joaquim de Fiore, o franciscano frei Dolcino e o protestante Thomas Munzer também foram líderes de movimentos religiosos dissidentes que pregavam a fraternidade e a comunhão universais entre os homens. Esses líderes incentivavam a supressão da propriedade privada (incluindo bens materiais em geral) e a convivência humana dentro de padrões de uma vida simples (ou seja, a pobreza).
Os líderes ortodoxos da Igreja Católica consideraram todos esses movimentos comunistas cristãos como heréticos e uma séria ameaça à instituição eclesiástica. Nos séculos seguintes, a perseguição e a repressão aos líderes desses movimentos os levaram ao declínio e à extinção.
Ideologia comunista remonta à Antigüidade
Renato Cancian*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
O comunismo é uma ideologia que prega a abolição da propriedade privada e o fim da luta de classes, além da construção de um regime político e econômico que possibilite o estabelecimento da igualdade e justiça social entre os homens.
Os filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) são apontados como os precursores das formulações teóricas e doutrinárias do comunismo. Historicamente, porém, as concepções e ideais de uma sociedade comunista remontam ao período da Antigüidade clássica. Nos séculos seguintes (que abrangem os períodos da Idade Média e Moderna), a ideologia comunista sofreu constantes reformulações.
Origens dos ideais comunistas
Os ideais comunistas floresceram no período da Antigüidade clássica a partir do pensamento do filósofo grego Platão (428 ou 427 a.C.). Em um de seus livros mais importantes, intitulado "A República", Platão concebe um modelo ideal de sociedade a partir da supressão da propriedade privada e da família.
De acordo com Platão, o fim da propriedade privada levaria ao fim do conflito entre o Estado (concebido como a manifestação do interesse público) e cada cidadão em particular (concebidos como a manifestação dos interesses privados). A abolição do núcleo familiar, por sua vez, teria como resultado uma maior devoção ao bem público.
Dessa forma, os vínculos matrimoniais deixariam de existir e o acasalamento entre homens e mulheres deveria ser temporário. Os filhos que nascessem deveriam desconhecer os pais e ficar sob cuidados permanentes do Estado, que proveria o sustento e a educação.
Paradoxalmente, os ideais comunistas platônicos não interferem nas diferenças de status existentes entre os cidadãos e não-cidadãos (classes inferiores, escravos) que coexistiam nas cidades-estados gregas. Em nenhum momento, no livro "A República", Platão questiona a emancipação dos escravos, que estão destinados a prover os meios de subsistência aos cidadãos gregos.
Comunismo e período medieval
Entre os séculos 12 e 15 apareceram algumas ideais comunistas baseados em pressupostos religiosos do cristianismo primitivo. Os cátaros (do grego kataroi, que significa "puro") e os valdenses (seguidores de Pierre Valdo, um rico comerciante francês que abandonou todos os seus bens) se constituíram em dissidências da Igreja Católica.
Em suas pregações, os adeptos desses grupos repudiavam a propriedade privada, exaltavam a pobreza e a necessidade de uma vida comunitária onde todos deveriam trabalhar e conviver igualitariamente.
O abade Joaquim de Fiore, o franciscano frei Dolcino e o protestante Thomas Munzer também foram líderes de movimentos religiosos dissidentes que pregavam a fraternidade e a comunhão universais entre os homens. Esses líderes incentivavam a supressão da propriedade privada (incluindo bens materiais em geral) e a convivência humana dentro de padrões de uma vida simples (ou seja, a pobreza).
Os líderes ortodoxos da Igreja Católica consideraram todos esses movimentos comunistas cristãos como heréticos e uma séria ameaça à instituição eclesiástica. Nos séculos seguintes, a perseguição e a repressão aos líderes desses movimentos os levaram ao declínio e à extinção.
Utopia
Obra de Thomas More propõe sociedade alternativa e perfeita
Utopia é uma palavra freqüentemente usada em português e em outras línguas para designar uma sociedade ideal, embora de existência impossível, ou uma idéia generosa, porém, impraticável. Enfim, uma quimera ou fantasia. Muita gente sabe que esse termo designa também a obra escrita por Thomas More ou Tomas Morus (1478-1535), onde o pensador e estadista inglês imagina uma sociedade perfeita.
No entanto, pouca gente leu ou conhece a obra de More - que é também um santo da Igreja católica - a que faz referência ao usar o seu título como vocábulo. Vale a pena começar analisando o próprio nome da obra, que se origina do grego: "u" é um advébio de negação e "tópos" significa lugar. "Não lugar", portanto, ou lugar inexistente, é o modo irônico com que o pensador batizou sua sociedade perfeita.
Tradição platônica
A idéia de Morus de criar uma sociedade imaginária vem de uma tradição que remonta a Platão (427-347 a.C) na obra "A República". Outras obras se filiam a essa mesma tradição, como é o caso de "A Cidade do Sol", escrita em 1602 pelo italiano Tommaso Canpanella (1568-1639), ou ainda "Walden 2", publicada em 1948, pelo psicólogo B. F. Skinner (1904-1990), o fundador do behaviorismo.
A "Utopia", de More, divide-se em dois livros: o primeiro, de caráter negativo faz a crítica à Inglaterra da época em que o autor vivia; o segundo, em contraponto, apresenta uma sociedade que lhe é alternativa. Em ambos os livros, Rafael Hitlodeu - personagem que é o "alter-ego" de More - narra sua viagem a Utopia e descreve a sociedade que viu.
Como se disse, a primeira parte é de crítica a uma Inglaterra em que os camponeses estão sendo expulsos do campo para as cidades, onde há bandos de ladrões e uma justiça cega, porém cruel, a realeza ávida de riquezas e sempre pronta para a guerra, sem falar nas perseguições religiosas. Essas regras são invertidas na República de Utopia.
Tolerância e paz
No âmbito religioso, por exemplo, não se pode prejudicar ninguém em nome da religião. A intolerância e o fanatismo são punidos com o exílio e a servidão. O povo pode escolher suas crenças e vários cultos coexistem em harmonia ecumênica.
Da mesma maneira, More/Hitlodeu descrevem os benefícios da paz e os horrores da guerra - numa crítica direta às guerras travadas por Henrique 8º por ganânica ou por paixão pela glória militar. Nesse sentido, mostra-se como o interesse da comunidade é sacrificado pela paixão dos príncipes pela guerra, que só enriquecerá os nobres e os novos proprietários (burguesia).
Enquanto isso, o povo, cada vez mais oprimido pelo trabalho incessante, precisa manter o exército, a corte e uma multidão de ociosos. A sede de dinheiro dos reis, dos nobres e dos grandes burgueses cria a miséria da maioria, alarga cada vez mais o abismo entre as classes sociais, transforma os juízes em carrascos e as penas em castigos pavorosos.
Em Utopia, naturalmente, nada disso existe, ou melhor, existe o contrário disso, numa República em que o Parlamento zela pelo bem do povo, o qual descobre que a propriedade individual e o dinheiro são incompatíveis com a felicidade.
Utopias contemporâneas
A idéia de uma sociedade igualitária subjacente à obra de Morus inspirou os socialistas do século 19, como Pierre Proudhom (1809-1865), Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858) e Saint-Simon (1760-1825), a quem Karl Marx (1818-1883) chamou de "socialistas utópicos", contrapondo-se a eles com a criação de um suposto "socialismo científico".
Não se pode deixar de dizer, contudo, que o socialismo científico de Marx, ao menos até o momento, se revelou tão utópico quanto o de seus precursores. Ou pior: em todos os lugares onde foi implantado, segundo as táticas de seu discípulo Valdimir Lênin (1870-1924), criaram-se sociedades hiperautoritárias.
Utopia é uma palavra freqüentemente usada em português e em outras línguas para designar uma sociedade ideal, embora de existência impossível, ou uma idéia generosa, porém, impraticável. Enfim, uma quimera ou fantasia. Muita gente sabe que esse termo designa também a obra escrita por Thomas More ou Tomas Morus (1478-1535), onde o pensador e estadista inglês imagina uma sociedade perfeita.
No entanto, pouca gente leu ou conhece a obra de More - que é também um santo da Igreja católica - a que faz referência ao usar o seu título como vocábulo. Vale a pena começar analisando o próprio nome da obra, que se origina do grego: "u" é um advébio de negação e "tópos" significa lugar. "Não lugar", portanto, ou lugar inexistente, é o modo irônico com que o pensador batizou sua sociedade perfeita.
Tradição platônica
A idéia de Morus de criar uma sociedade imaginária vem de uma tradição que remonta a Platão (427-347 a.C) na obra "A República". Outras obras se filiam a essa mesma tradição, como é o caso de "A Cidade do Sol", escrita em 1602 pelo italiano Tommaso Canpanella (1568-1639), ou ainda "Walden 2", publicada em 1948, pelo psicólogo B. F. Skinner (1904-1990), o fundador do behaviorismo.
A "Utopia", de More, divide-se em dois livros: o primeiro, de caráter negativo faz a crítica à Inglaterra da época em que o autor vivia; o segundo, em contraponto, apresenta uma sociedade que lhe é alternativa. Em ambos os livros, Rafael Hitlodeu - personagem que é o "alter-ego" de More - narra sua viagem a Utopia e descreve a sociedade que viu.
Como se disse, a primeira parte é de crítica a uma Inglaterra em que os camponeses estão sendo expulsos do campo para as cidades, onde há bandos de ladrões e uma justiça cega, porém cruel, a realeza ávida de riquezas e sempre pronta para a guerra, sem falar nas perseguições religiosas. Essas regras são invertidas na República de Utopia.
Tolerância e paz
No âmbito religioso, por exemplo, não se pode prejudicar ninguém em nome da religião. A intolerância e o fanatismo são punidos com o exílio e a servidão. O povo pode escolher suas crenças e vários cultos coexistem em harmonia ecumênica.
Da mesma maneira, More/Hitlodeu descrevem os benefícios da paz e os horrores da guerra - numa crítica direta às guerras travadas por Henrique 8º por ganânica ou por paixão pela glória militar. Nesse sentido, mostra-se como o interesse da comunidade é sacrificado pela paixão dos príncipes pela guerra, que só enriquecerá os nobres e os novos proprietários (burguesia).
Enquanto isso, o povo, cada vez mais oprimido pelo trabalho incessante, precisa manter o exército, a corte e uma multidão de ociosos. A sede de dinheiro dos reis, dos nobres e dos grandes burgueses cria a miséria da maioria, alarga cada vez mais o abismo entre as classes sociais, transforma os juízes em carrascos e as penas em castigos pavorosos.
Em Utopia, naturalmente, nada disso existe, ou melhor, existe o contrário disso, numa República em que o Parlamento zela pelo bem do povo, o qual descobre que a propriedade individual e o dinheiro são incompatíveis com a felicidade.
Utopias contemporâneas
A idéia de uma sociedade igualitária subjacente à obra de Morus inspirou os socialistas do século 19, como Pierre Proudhom (1809-1865), Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858) e Saint-Simon (1760-1825), a quem Karl Marx (1818-1883) chamou de "socialistas utópicos", contrapondo-se a eles com a criação de um suposto "socialismo científico".
Não se pode deixar de dizer, contudo, que o socialismo científico de Marx, ao menos até o momento, se revelou tão utópico quanto o de seus precursores. Ou pior: em todos os lugares onde foi implantado, segundo as táticas de seu discípulo Valdimir Lênin (1870-1924), criaram-se sociedades hiperautoritárias.
República
O que significa e como ela se relaciona com a democracia
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação
Usado durante a Revolução francesa, o barrete frígio tornou-se símbolo da república.
Ao se falar em república, nos dias de hoje, a primeira coisa que se pensa é que estamos diante de um sistema de governo cujo oposto é a monarquia. Neste último, é a hereditariedade que determina o governante (o rei ou a rainha de hoje é o herdeiro do monarca anterior); enquanto na república o governante é eleito direta ou indiretamente.
Essa oposição é, de fato, correta, e tem fundamentos históricos: a república surgiu como uma nova forma de organização do poder em Roma após a expulsão de seu último rei, Tarquínio, o Soberbo, em 509 a.C. Entretanto, deixando de lado essa característica inicial e examinando mais a fundo o conceito de república, descobriremos outros elementos que realçam a justeza e a dignidade dessa forma de governo.
Coisa pública
Em primeiro lugar, república vem do latim res publica que significa "coisa pública", "coisa do povo". Nesse sentido, um governo republicano é aquele que põe ênfase no interesse comum, no interesse da comunidade, em oposição aos interesses particulares e aos negócios privados. Sob esse ponto de vista, a república não difere somente da monarquia, mas também da aristocracia e da democracia, conceitos que ressaltam o princípio do governo: de um, de alguns ou do povo. Ao contrário, a república se volta para a finalidade do governo: o interesse (o bem) comum.
O político, filósofo e orador romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) contribuiu definitivamente para estabelecer o conceito, em sua obra "Da República", publicada cerca de 51 a.C. Para tanto, ele deu sua definição de povo: homens associados pelo direito a partir de interesses que lhes são comuns. A associação pelo direito pressupõe a existência de leis e, para promover os interesses comuns, essas leis devem ser a expressão da vontade popular.
Repúblicas modernas
Ironicamente, Cícero estabeleceu em termos filosóficos o conceito de república na mesma ocasião em que a república em Roma desmoronava. Cerca de três décadas depois da publicação de sua obra, em 27 a.C. Roma tornou-se um império. Depois, muitos séculos se passariam, até o surgimento das repúblicas modernas, instauradas pela Revolução americana, em 1776, e pela Revolução Francesa, de 1789, que, entretanto, instituiu a república em 1792.
Entre as repúblicas norte-americana e francesa há algumas diferenças no modo de organização do poder, embora não de caráter qualitativo, mas sim quantitativo. A Constituição da França pós-revolução proclamava uma república "una e indivisível", pois considerava o povo soberano, de modo que a manifestação de sua vontade só poderia se dar através de um corpo legislativo uno e indivisível.
Ao contrário, a Constituição norte-americana propõe uma república federal onde Estados e União têm suas esferas de atribuições bem definidas. A vontade da Federação é a confluência da vontade dos Estados (representados pelo Senado) e da população (representada pelos deputados).
Presidencialismo e parlamentarismo
Outra diferença entre essas repúblicas - que persiste em diversos países no mundo contemporâneo - é que o regime francês é parlamentarista: o presidente da república tem poderes reduzidos, sendo o chefe de Estado, mas não o chefe de governo, cargo exercido pelo primeiro-ministro. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, vigora o presidencialismo e o presidente acumula as duas chefias.
É muito importante discutir-se a questão da república no Brasil. Proclamada em 15 de novembro de 1889, ela não fez os interesses públicos se sobreporem aos privados, haja vista a República Velha, para não se falar dos escândalos da atualidade. Recentemente, o filósofo Renato Janine Ribeiro, da Universidade de São Paulo (USP), publicou um lúcido ensaio onde faz uma reflexão muito pertinente sobre o tema e que, por isso, vale a pena comentar aqui.
Repúplica e democracia
Lembra o filósofo que estamos acostumados a considerar república e democracia como termos intercambiáveis ou análogos, mesmo sabendo que existem repúblicas que não são democráticas, assim como monarquias constitucionais que são não só democráticas, mas às vezes mais republicanas do que muitas repúblicas.
Por isso, Janine Ribeiro acha importante apresentar uma oposição entre os dois conceitos, afirmando que "enquanto a democracia tem no seu cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela, e portanto é um regime do desejo, a república tem no seu âmago uma disposição ao sacrifício, proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular." Ou seja, "na temática republicana é a idéia de dever" que se sobressai.
Desse modo, o filósofo conclui:
"A democracia, para existir, necessita da república. Isso, que parece evidente, não é nada óbvio! Significa que para haver o acesso de todos aos bens, para se satisfazer o desejo de ter, é preciso tomar o poder - e isso implica refrear o desejo de mandar (e com ele o de ter), compreender que, quando todos mandam, todos igualmente obedecem, e por conseguinte devem saber cumprir a lei que emana de sua própria vontade. Para dizê-lo numa só palavra, o problema da democracia, quando ela se efetiva - e ela só se pode efetivar sendo republicana - é que, ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os desejos."
Se pudermos entender a contenção e educação dos desejos como um modo de praticar a ética e a virtude, talvez possamos concluir esse artigo concordando com outro filósofo, o italiano Norberto Bobbio, um dos mais importantes a refletir sobre a ética e a política na segunda metade do século 20. Para ele, "o fundamento de uma boa república, mais até do que as boas leis, é a virtude dos cidadãos".
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação.
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação
Usado durante a Revolução francesa, o barrete frígio tornou-se símbolo da república.
Ao se falar em república, nos dias de hoje, a primeira coisa que se pensa é que estamos diante de um sistema de governo cujo oposto é a monarquia. Neste último, é a hereditariedade que determina o governante (o rei ou a rainha de hoje é o herdeiro do monarca anterior); enquanto na república o governante é eleito direta ou indiretamente.
Essa oposição é, de fato, correta, e tem fundamentos históricos: a república surgiu como uma nova forma de organização do poder em Roma após a expulsão de seu último rei, Tarquínio, o Soberbo, em 509 a.C. Entretanto, deixando de lado essa característica inicial e examinando mais a fundo o conceito de república, descobriremos outros elementos que realçam a justeza e a dignidade dessa forma de governo.
Coisa pública
Em primeiro lugar, república vem do latim res publica que significa "coisa pública", "coisa do povo". Nesse sentido, um governo republicano é aquele que põe ênfase no interesse comum, no interesse da comunidade, em oposição aos interesses particulares e aos negócios privados. Sob esse ponto de vista, a república não difere somente da monarquia, mas também da aristocracia e da democracia, conceitos que ressaltam o princípio do governo: de um, de alguns ou do povo. Ao contrário, a república se volta para a finalidade do governo: o interesse (o bem) comum.
O político, filósofo e orador romano Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) contribuiu definitivamente para estabelecer o conceito, em sua obra "Da República", publicada cerca de 51 a.C. Para tanto, ele deu sua definição de povo: homens associados pelo direito a partir de interesses que lhes são comuns. A associação pelo direito pressupõe a existência de leis e, para promover os interesses comuns, essas leis devem ser a expressão da vontade popular.
Repúblicas modernas
Ironicamente, Cícero estabeleceu em termos filosóficos o conceito de república na mesma ocasião em que a república em Roma desmoronava. Cerca de três décadas depois da publicação de sua obra, em 27 a.C. Roma tornou-se um império. Depois, muitos séculos se passariam, até o surgimento das repúblicas modernas, instauradas pela Revolução americana, em 1776, e pela Revolução Francesa, de 1789, que, entretanto, instituiu a república em 1792.
Entre as repúblicas norte-americana e francesa há algumas diferenças no modo de organização do poder, embora não de caráter qualitativo, mas sim quantitativo. A Constituição da França pós-revolução proclamava uma república "una e indivisível", pois considerava o povo soberano, de modo que a manifestação de sua vontade só poderia se dar através de um corpo legislativo uno e indivisível.
Ao contrário, a Constituição norte-americana propõe uma república federal onde Estados e União têm suas esferas de atribuições bem definidas. A vontade da Federação é a confluência da vontade dos Estados (representados pelo Senado) e da população (representada pelos deputados).
Presidencialismo e parlamentarismo
Outra diferença entre essas repúblicas - que persiste em diversos países no mundo contemporâneo - é que o regime francês é parlamentarista: o presidente da república tem poderes reduzidos, sendo o chefe de Estado, mas não o chefe de governo, cargo exercido pelo primeiro-ministro. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, vigora o presidencialismo e o presidente acumula as duas chefias.
É muito importante discutir-se a questão da república no Brasil. Proclamada em 15 de novembro de 1889, ela não fez os interesses públicos se sobreporem aos privados, haja vista a República Velha, para não se falar dos escândalos da atualidade. Recentemente, o filósofo Renato Janine Ribeiro, da Universidade de São Paulo (USP), publicou um lúcido ensaio onde faz uma reflexão muito pertinente sobre o tema e que, por isso, vale a pena comentar aqui.
Repúplica e democracia
Lembra o filósofo que estamos acostumados a considerar república e democracia como termos intercambiáveis ou análogos, mesmo sabendo que existem repúblicas que não são democráticas, assim como monarquias constitucionais que são não só democráticas, mas às vezes mais republicanas do que muitas repúblicas.
Por isso, Janine Ribeiro acha importante apresentar uma oposição entre os dois conceitos, afirmando que "enquanto a democracia tem no seu cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela, e portanto é um regime do desejo, a república tem no seu âmago uma disposição ao sacrifício, proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular." Ou seja, "na temática republicana é a idéia de dever" que se sobressai.
Desse modo, o filósofo conclui:
"A democracia, para existir, necessita da república. Isso, que parece evidente, não é nada óbvio! Significa que para haver o acesso de todos aos bens, para se satisfazer o desejo de ter, é preciso tomar o poder - e isso implica refrear o desejo de mandar (e com ele o de ter), compreender que, quando todos mandam, todos igualmente obedecem, e por conseguinte devem saber cumprir a lei que emana de sua própria vontade. Para dizê-lo numa só palavra, o problema da democracia, quando ela se efetiva - e ela só se pode efetivar sendo republicana - é que, ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os desejos."
Se pudermos entender a contenção e educação dos desejos como um modo de praticar a ética e a virtude, talvez possamos concluir esse artigo concordando com outro filósofo, o italiano Norberto Bobbio, um dos mais importantes a refletir sobre a ética e a política na segunda metade do século 20. Para ele, "o fundamento de uma boa república, mais até do que as boas leis, é a virtude dos cidadãos".
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação.
Marx - Alienação
Do Espírito Absoluto de Hegel à realidade concreta
José Renato Salatiel*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
"Esses jovens de hoje, tão alienados...". Esta expressão, que a maioria de nós já ouviu alguma vez na vida, provavelmente foi entendida como se referindo ao fato de que, na juventude, não temos muita responsabilidade, queremos mais é curtir a vida. Mas, afinal de contas, será que somos alienados? O que é, então, alienação?
O termo entrou no vocabulário contemporâneo graças a Karl Marx, que, assim como no caso do conceito de dialética, retirou a idéia de alienação de suas leituras de Hegel, mas o revestiu de um caráter inovador e, como em tudo em Marx, muito crítico.
Tanto em Marx quanto em Hegel, alienação está ligada ao trabalho. Para Hegel, o trabalho é a essência do homem, quer dizer, é somente por meio de seu trabalho que o homem pode realizar plenamente suas habilidades em produções materiais.
Mas quando o pensamento puro se torna pensamento sensível, visando uma realização material na forma de trabalho, nos alienamos, isto é, nos separamos da essência pura e abrimos caminho para uma separação entre ideal e real, que de novo irão se unir ao que Hegel chama de Espírito Absoluto.
Muito abstrato? Marx também achou, mas viu nestas idéias algo interessante, que poderia explicar as relações sociais no capitalismo e, mais do que isso, desvendar um dispositivo fundamental da máquina capitalista.
Para isso, voltou-se para a realidade concreta, em que os trabalhadores eram explorados em fábricas e deixavam seus patrões cada vez mais ricos, enquanto eles e suas famílias ficavam cada vez mais pobres. Como poderiam aceitar tal coisa?
Trabalho alienado
Alienação, para Marx, tem um sentido negativo (em Hegel, é algo positivo) em que o trabalho, ao invés de realizar o homem, o escraviza; ao invés de humanizá-lo, o desumaniza. O homem troca o verbo SER pelo TER: sua vida passa a medir-se pelo que ele possui, não pelo que ele é. Isso parece familiar? Pois é, vamos ver os detalhes.
O filósofo alemão concebeu diferentes formas de alienação, como a religião ou o Estado, em que o homem, longe de tornar-se livre, cada vez mais se aprisionaria. Mas uma alienação é básica, segundo Marx: a alienação econômica.
A alienação econômica pode ser descrita de duas formas: o trabalho como (a) atividade fragmentada e como (b) produto apropriado por outros.
Tempos modernos
No primeiro caso, a separação do trabalho, em todas as suas instâncias, aliena o trabalhador, que não se reconhece mais em uma atividade - porque ele faz apenas uma peça de um carro em uma escala produtiva e não tem a visão do conjunto, por exemplo - e porque acaba desenvolvendo apenas uma de suas habilidades, seja braçal ou intelectual, provocando, com isso também, uma divisão social.
Essa divisão do trabalho foi fundamental para a organização da sociedade capitalista. Não seria possível sequer vestirmos tênis se não existissem trabalhadores que os produzissem em larga escala em fábricas, onde cada um é responsável por uma etapa na produção.
O melhor exemplo de como funciona este processo e suas conseqüências sociais pode ser visto no filme "Tempos Modernos" (1936), dirigido e estrelado por Charles Chaplin, que mostra, de forma bem humorada, a vida de um operário sendo controlada pela máquina na linha de montagem de uma fábrica.
Exploração
No segundo caso, o trabalhador tem a riqueza gerada pelo seu trabalho tomada pelos proprietários dos meios de produção. Ele é levado a gerar acumulação de capital e lucro para uma minoria, enquanto vive na pobreza.
Um empregado de uma fábrica de TV de LCD, por exemplo, em oito horas diárias de trabalho produz, ao final do mês, um número considerável de aparelhos, mas recebe apenas uma pequena parcela disso em forma de salário. O que recebe não permite sequer adquirir aquilo que ele produz - uma TV de R$ 5 mil - e o modo de vida de sua família é muito diferente daqueles que consomem seu produto.
O trabalhador não reconhece mais o produto de seu trabalho e não se dá conta da exploração a que é submetido. O que se exterioriza não é sua essência, mas algo estranho a ele.
Diz Marx: "A alienação aparece tanto no fato de que meu meio de vida é de outro, que meu desejo é a posse inacessível de outro, como no caso de que cada coisa é outra que ela mesma, que minha atividade é outra coisa e que, finalmente (e isto é válido também para o capitalista), domina em geral o poder desumano".
Divisão do trabalho e acumulação de capital, que, juntos, formam a base de uma sociedade capitalista, são também as fontes de alienação moderna, segundo Marx, por meio das quais se constitui um sistema de dominação.
Comunismo
Qual a solução? Se o trabalho, no sistema capitalista, é fonte de alienação, e se o capital é, basicamente, propriedade privada, isto é, a posse e o acúmulo de objetos, a superação do homem alienado só virá, para Marx, com a sociedade comunista.
Segundo Marx, somente com o comunismo as pessoas deixariam de ser alienadas, pois tudo seria de todos e não haveria necessidade de divisão ou expropriação do trabalho alheio. "A superação da propriedade privada é, por isso, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas", diz Marx.
Marx, provavelmente, ficaria muito aborrecido em ver que, na prática, os ideais do comunismo, na forma de dogmas, somente trouxeram mais alienação. Sua crítica, no entanto, parece atual diante de uma juventude destituída de ideais políticos que se contenta com prazeres imediatos proporcionados pelo consumo. É o celular da moda, o tênis de marca e o carro de luxo que definem sua essência?
O que ler
O texto-base para entender a teoria da alienação de Marx é Manuscritos Econômico-filosóficos (Boitempo Editorial). Trata-se de uma obra de juventude, em que Marx antecipa boa parte das teses que desenvolveria em O Capital, além de demonstrar como suas teorias são incompatíveis com as ditaduras comunistas dos séculos 20 e 21.
José Renato Salatiel*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
"Esses jovens de hoje, tão alienados...". Esta expressão, que a maioria de nós já ouviu alguma vez na vida, provavelmente foi entendida como se referindo ao fato de que, na juventude, não temos muita responsabilidade, queremos mais é curtir a vida. Mas, afinal de contas, será que somos alienados? O que é, então, alienação?
O termo entrou no vocabulário contemporâneo graças a Karl Marx, que, assim como no caso do conceito de dialética, retirou a idéia de alienação de suas leituras de Hegel, mas o revestiu de um caráter inovador e, como em tudo em Marx, muito crítico.
Tanto em Marx quanto em Hegel, alienação está ligada ao trabalho. Para Hegel, o trabalho é a essência do homem, quer dizer, é somente por meio de seu trabalho que o homem pode realizar plenamente suas habilidades em produções materiais.
Mas quando o pensamento puro se torna pensamento sensível, visando uma realização material na forma de trabalho, nos alienamos, isto é, nos separamos da essência pura e abrimos caminho para uma separação entre ideal e real, que de novo irão se unir ao que Hegel chama de Espírito Absoluto.
Muito abstrato? Marx também achou, mas viu nestas idéias algo interessante, que poderia explicar as relações sociais no capitalismo e, mais do que isso, desvendar um dispositivo fundamental da máquina capitalista.
Para isso, voltou-se para a realidade concreta, em que os trabalhadores eram explorados em fábricas e deixavam seus patrões cada vez mais ricos, enquanto eles e suas famílias ficavam cada vez mais pobres. Como poderiam aceitar tal coisa?
Trabalho alienado
Alienação, para Marx, tem um sentido negativo (em Hegel, é algo positivo) em que o trabalho, ao invés de realizar o homem, o escraviza; ao invés de humanizá-lo, o desumaniza. O homem troca o verbo SER pelo TER: sua vida passa a medir-se pelo que ele possui, não pelo que ele é. Isso parece familiar? Pois é, vamos ver os detalhes.
O filósofo alemão concebeu diferentes formas de alienação, como a religião ou o Estado, em que o homem, longe de tornar-se livre, cada vez mais se aprisionaria. Mas uma alienação é básica, segundo Marx: a alienação econômica.
A alienação econômica pode ser descrita de duas formas: o trabalho como (a) atividade fragmentada e como (b) produto apropriado por outros.
Tempos modernos
No primeiro caso, a separação do trabalho, em todas as suas instâncias, aliena o trabalhador, que não se reconhece mais em uma atividade - porque ele faz apenas uma peça de um carro em uma escala produtiva e não tem a visão do conjunto, por exemplo - e porque acaba desenvolvendo apenas uma de suas habilidades, seja braçal ou intelectual, provocando, com isso também, uma divisão social.
Essa divisão do trabalho foi fundamental para a organização da sociedade capitalista. Não seria possível sequer vestirmos tênis se não existissem trabalhadores que os produzissem em larga escala em fábricas, onde cada um é responsável por uma etapa na produção.
O melhor exemplo de como funciona este processo e suas conseqüências sociais pode ser visto no filme "Tempos Modernos" (1936), dirigido e estrelado por Charles Chaplin, que mostra, de forma bem humorada, a vida de um operário sendo controlada pela máquina na linha de montagem de uma fábrica.
Exploração
No segundo caso, o trabalhador tem a riqueza gerada pelo seu trabalho tomada pelos proprietários dos meios de produção. Ele é levado a gerar acumulação de capital e lucro para uma minoria, enquanto vive na pobreza.
Um empregado de uma fábrica de TV de LCD, por exemplo, em oito horas diárias de trabalho produz, ao final do mês, um número considerável de aparelhos, mas recebe apenas uma pequena parcela disso em forma de salário. O que recebe não permite sequer adquirir aquilo que ele produz - uma TV de R$ 5 mil - e o modo de vida de sua família é muito diferente daqueles que consomem seu produto.
O trabalhador não reconhece mais o produto de seu trabalho e não se dá conta da exploração a que é submetido. O que se exterioriza não é sua essência, mas algo estranho a ele.
Diz Marx: "A alienação aparece tanto no fato de que meu meio de vida é de outro, que meu desejo é a posse inacessível de outro, como no caso de que cada coisa é outra que ela mesma, que minha atividade é outra coisa e que, finalmente (e isto é válido também para o capitalista), domina em geral o poder desumano".
Divisão do trabalho e acumulação de capital, que, juntos, formam a base de uma sociedade capitalista, são também as fontes de alienação moderna, segundo Marx, por meio das quais se constitui um sistema de dominação.
Comunismo
Qual a solução? Se o trabalho, no sistema capitalista, é fonte de alienação, e se o capital é, basicamente, propriedade privada, isto é, a posse e o acúmulo de objetos, a superação do homem alienado só virá, para Marx, com a sociedade comunista.
Segundo Marx, somente com o comunismo as pessoas deixariam de ser alienadas, pois tudo seria de todos e não haveria necessidade de divisão ou expropriação do trabalho alheio. "A superação da propriedade privada é, por isso, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas", diz Marx.
Marx, provavelmente, ficaria muito aborrecido em ver que, na prática, os ideais do comunismo, na forma de dogmas, somente trouxeram mais alienação. Sua crítica, no entanto, parece atual diante de uma juventude destituída de ideais políticos que se contenta com prazeres imediatos proporcionados pelo consumo. É o celular da moda, o tênis de marca e o carro de luxo que definem sua essência?
O que ler
O texto-base para entender a teoria da alienação de Marx é Manuscritos Econômico-filosóficos (Boitempo Editorial). Trata-se de uma obra de juventude, em que Marx antecipa boa parte das teses que desenvolveria em O Capital, além de demonstrar como suas teorias são incompatíveis com as ditaduras comunistas dos séculos 20 e 21.
Maquiavel
A política e "O Príncipe"
Heidi Strecker*
Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
Quando queremos dizer que alguém é ardiloso, astuto ou pérfido, costumamos dizer que é maquiavélico. O adjetivo não é nada lisonjeiro, mas o responsável por ele é um dos filósofos mais importantes da história da filosofia política. Niccolò Maquiavel (1469-1527) nasceu em Florença, na época do Renascimento.
Como sabemos, o Renascimento foi um período de intensa renovação. Caracterizou-se por um movimento intelectual baseado na recuperação dos valores e modelos da Antigüidade greco-romana, contrapondo-os à tradição medieval ou adaptando-os a ela. O Renascimento referiu-se não apenas às artes plásticas, a arquitetura e as letras, mas também à organização política e econômica da sociedade.
O Príncipe
Durante o período medieval, o poder político era concebido como presente divino. Os teólogos elaboraram suas teorias políticas baseados nas escrituras sagradas e no direito romano. No período do Renascimento, os clássicos gregos e latinos passaram a lastrear o pensamento político. Maquiavel, no entanto, elaborou uma teoria política totalmente inédita, fundamentada na prática e na experiência concreta.
"O Príncipe" sintetiza o pensamento político de Maquiavel. A obra foi escrita durante algumas semanas, em 1513, durante o exílio de Maquiavel, que tinha sido banido de Florença, acusado de conspirar contra o governo. Mas só foi publicada em 1532, cinco anos depois da morte do autor.
Como tinha sido diplomata e homem de estado, Maquiavel conhecia bem os mecanismos e os instrumentos de poder. O que temos em "O Príncipe" é uma análise lúcida e cortante do poder político, visto por dentro e de perto.
Os fins justificam os meios
A Europa passava então por grandes transformações. Uma nova classe social, a burguesia comercial, buscava espaço político junto à nobreza, ao mesmo tempo em que assistia a um movimento de centralização do poder que daria origem aos Estados absolutistas (Portugal, Espanha, França e Inglaterra).
Em "O Príncipe" (palavra que designa todos os governantes), a política não é vista mais através de um fundamento exterior a ela própria (como Deus, a razão ou a natureza), mas sim como uma atividade humana. O que move a política, segundo Maquiavel, é a luta pela conquista e pela manutenção do poder.
A primeira leitura que se fez dos escritos de Maquiavel tomou o livro como um manual de conselhos práticos aos governantes. A premissa de que "os fins justificam os meios" (frase que não é de Maquiavel, no entanto) passou a nortear a compreensão da obra. Daí a reputação de maquiavélico dada ao governante sem escrúpulos.
O pensamento político contemporâneo
"O Príncipe" tem um estilo elegante e direto. Suas partes são bem organizadas, tanto na apresentação quanto na distribuição dos temas. O procedimento principal do narrador é comparar experiências históricas com fatos contemporâneos, a fim de analisar as sociedades e a política. Em algumas passagens, o próprio autor se torna personagem das situações que descreve.
Podemos dividir a obra política de Maquiavel em quatro partes: classificação dos Estados; como conquistar e conservar os Estados; análise do papel dos militares e conselhos aos políticos para manutenção do poder. Dizemos que Maquiavel é o fundador do pensamento político contemporâneo, pois foi o primeiro a pintar os fatos "como realmente são" e não mais "como deveriam ser".
Além de "O Príncipe", Maquiavel deixou outras obras, como o "Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio", "A Arte da Guerra" e "Histórias Florentinas". Deixou também uma peça de teatro, "A Mandrágora", que se tornou um clássico do repertório teatral de todos os tempos.
*Heidi Strecker é filósofa e educadora.
Heidi Strecker*
Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
Quando queremos dizer que alguém é ardiloso, astuto ou pérfido, costumamos dizer que é maquiavélico. O adjetivo não é nada lisonjeiro, mas o responsável por ele é um dos filósofos mais importantes da história da filosofia política. Niccolò Maquiavel (1469-1527) nasceu em Florença, na época do Renascimento.
Como sabemos, o Renascimento foi um período de intensa renovação. Caracterizou-se por um movimento intelectual baseado na recuperação dos valores e modelos da Antigüidade greco-romana, contrapondo-os à tradição medieval ou adaptando-os a ela. O Renascimento referiu-se não apenas às artes plásticas, a arquitetura e as letras, mas também à organização política e econômica da sociedade.
O Príncipe
Durante o período medieval, o poder político era concebido como presente divino. Os teólogos elaboraram suas teorias políticas baseados nas escrituras sagradas e no direito romano. No período do Renascimento, os clássicos gregos e latinos passaram a lastrear o pensamento político. Maquiavel, no entanto, elaborou uma teoria política totalmente inédita, fundamentada na prática e na experiência concreta.
"O Príncipe" sintetiza o pensamento político de Maquiavel. A obra foi escrita durante algumas semanas, em 1513, durante o exílio de Maquiavel, que tinha sido banido de Florença, acusado de conspirar contra o governo. Mas só foi publicada em 1532, cinco anos depois da morte do autor.
Como tinha sido diplomata e homem de estado, Maquiavel conhecia bem os mecanismos e os instrumentos de poder. O que temos em "O Príncipe" é uma análise lúcida e cortante do poder político, visto por dentro e de perto.
Os fins justificam os meios
A Europa passava então por grandes transformações. Uma nova classe social, a burguesia comercial, buscava espaço político junto à nobreza, ao mesmo tempo em que assistia a um movimento de centralização do poder que daria origem aos Estados absolutistas (Portugal, Espanha, França e Inglaterra).
Em "O Príncipe" (palavra que designa todos os governantes), a política não é vista mais através de um fundamento exterior a ela própria (como Deus, a razão ou a natureza), mas sim como uma atividade humana. O que move a política, segundo Maquiavel, é a luta pela conquista e pela manutenção do poder.
A primeira leitura que se fez dos escritos de Maquiavel tomou o livro como um manual de conselhos práticos aos governantes. A premissa de que "os fins justificam os meios" (frase que não é de Maquiavel, no entanto) passou a nortear a compreensão da obra. Daí a reputação de maquiavélico dada ao governante sem escrúpulos.
O pensamento político contemporâneo
"O Príncipe" tem um estilo elegante e direto. Suas partes são bem organizadas, tanto na apresentação quanto na distribuição dos temas. O procedimento principal do narrador é comparar experiências históricas com fatos contemporâneos, a fim de analisar as sociedades e a política. Em algumas passagens, o próprio autor se torna personagem das situações que descreve.
Podemos dividir a obra política de Maquiavel em quatro partes: classificação dos Estados; como conquistar e conservar os Estados; análise do papel dos militares e conselhos aos políticos para manutenção do poder. Dizemos que Maquiavel é o fundador do pensamento político contemporâneo, pois foi o primeiro a pintar os fatos "como realmente são" e não mais "como deveriam ser".
Além de "O Príncipe", Maquiavel deixou outras obras, como o "Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio", "A Arte da Guerra" e "Histórias Florentinas". Deixou também uma peça de teatro, "A Mandrágora", que se tornou um clássico do repertório teatral de todos os tempos.
*Heidi Strecker é filósofa e educadora.
Ditadura
A ditadura na Roma antiga e nos dias atuais
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 - Pedagogia & Comunicação
O conceito de ditadura se origina Roma antiga. Em latim, a palavra era "dictatura". Entretanto, o significado moderno do conceito é completamente diferente da instituição que ele designava na Antigüidade. De qualquer modo, uma comparação entre ditadura antiga e moderna pode ajudar a compreender melhor o sentido que o termo adquiriu nos dias de hoje.
Para começar, a ditadura romana era uma instituição de caráter extraordinário. Só era ativada em circunstâncias excepcionais, para fazer frente a situações de emergência, como uma crise interna ou uma guerra. O ditador era nomeado por um ou pelos dois cônsules - os chefes do governo romano -, de acordo com o senado e por processos definidos constitucionalmente. Da mesma maneira, também eram definidos os limites de sua atuação.
Ainda assim, os poderes do ditador eram muito amplos e seus decretos - o que ele "ditava" (e vem daí "ditadura") - tinham o valor de lei. Apesar disso, seus poderes não eram ilimitados: o ditador não podia revogar ou mudar a Constituição, declarar guerra, criar novos impostos para os cidadãos romanos, nem exercer o papel de juiz nos casos de direito civil. Finalmente, a ditadura tinha sua duração explicitamente fixada: não podia durar mais de seis meses.
Um poder sem limites
Atualmente, a expressão ditadura serve para designar os regimes de governo não-democráticos ou antidemocráticos, isto é, aqueles onde não há participação popular, ou onde isso ocorre de maneira muito restrita. Nesse sentido, de igual à ditadura romana, ela só apresenta uma coisa: a concentração de poder nas mãos do ditador. Além disso, a ditadura moderna não é autorizada por regras constitucionais: ela se impõe de fato, pela força, subvertendo a ordem política que existia anteriormente.
Para piorar, a extensão do poder do ditador não está determinado pela Constituição nem sofre qualquer tipo de limites. Sua duração não está prevista de modo algum e pode se estender por décadas. No Brasil, por exemplo, a última ditadura foi de 1964 a 1985. Na Espanha, o general Francisco Franco tomou o governo em 1936 e só o deixou quando morreu, em 1975, numa ditadura que durou cerca de 40 anos. Em Cuba, hoje, o ditador Fidel Castro já completou 46 anos no poder.
A ditadura moderna implica, antes de mais nada, a concentração de poder. Em geral, num órgão já existente do Estado (via de regra, o poder Executivo). Estende também o poder além dos limites normais, por exemplo, suspendendo os direitos dos cidadãos. Deixa ainda o poder livre dos freios e dos controles estabelecidos pelas leis. Foi o que aconteceu no Brasil, por exemplo, a partir de 1968, quando o Ato Institucional no. 5, deu imensos poderes ao Executivo, como o de fechar o Legislativo, caso lhe fosse conveniente.
Por tudo isso, a ditadura moderna tem uma conotação inquestionavelmente negativa. Designa, como já se disse, os regimes não-democráticos ou antidemocráticos. É um contraponto à democracia, na qual o poder se encontra dividido em várias instâncias de poder, equilibrando-se Executivo, Legislativo e Judiciário. Num regime democrático, a transmissão da autoridade política é feita de baixo para cima, através da manifestação popular, via eleições. Na ditadura, além da concentração do poder numa instância exclusiva, a transmissão da autoridade política ocorre de cima para baixo, a partir da decisão do ditador ou dos ditadores.
Conservadores e revolucionários
Nos dias de hoje, quanto às finalidades com que são instaladas, podem-se distinguir dois tipos de ditadura: 1) as conservadoras, cuja finalidade é defender o satus quo dos perigos de uma mudança. Esse foi o caso das várias ditaduras militares que se estabeleceram na América Latina nos anos 1960 e 70: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai... 2) as revolucionárias, que visam abater ou minar, de forma radical, a velha ordem político-social e introduzir uma ordem nova, como foi o governo instaurado pela Convenção Nacional francesa, em 1793, que pôs fim à monarquia, ou ainda o próprio governo cubano, depois de 1959, que instaurou o socialismo no país.
Entretanto, existem outros termos usados para denominar regimes não-democráticos. Dentre eles, os mais importantes são despotismo, absolutismo, tirania, autocracia e autoritarismo. No vocabulário comum e mesmo no vocabulário político do dia-a-dia, esses termos são freqüentemente usados como sinônimos. Na filosofia política, porém, podem-se estabelecer distinções entre eles.
Despotismo
Despotismo, num primeiro sentido, refere-se ao despotismo oriental, da Antigüidade. Tratava-se do governo monocrático (monos = um só), típico da Ásia e da África e que era oposto à democracia grega. O filósofo Aristóteles o chamava de despótico, comparando-o ao poder que o patrão (em grego, despotes) exerce sobre o escravo.
Na Idade Moderna, o pensador francês Montesquieu (1689-1755) retomou o conceito, definindo-o como o governo no qual "um, sozinho, sem leis nem freios, arrasta tudo e todos no sabor de suas vontades e de seus caprichos". Na Europa dos séculos 17 e 18, despotismo serviu para designar os regimes de monarquia absolutista, que poderia ser considerado bom ou mal, de acordo com a maneira com que o monarca exerce o poder.
É nesse sentido que se fala em despotismo esclarecido, no século 18, quando o monarca, embora detenha o poder absoluto, é "instruído por sábios conselheiros sobre a existência das verdadeiras leis, gozando da plenitude de seus poderes para aplicá-las e promover, agindo assim, o bem estar e a felicidade de seus súditos".
Tanto o despotismo quanto o absolutismo são conceitos que se aplicam a monarquias hereditárias, consideradas legítimas pelos súditos, que integram uma sociedade tradicional. Nela, a participação política da grande maioria da população é nula. A monarquia é vista como a única forma de governo possível, por ter as suas raízes no passado mitológico ou na origem divina.
Tirania e autocracia
Tirania era o governo de exceção na Grécia antiga. Assemelhava-se à ditadura moderna, pois nasciam das crises e da desagregação da democracia ou de algum regime político tradicional. O tirano não era um monarca legítimo, mas o chefe de alguma fração política, que impunha pela força o próprio poder a todos os outros partidos. Da mesma forma que os ditadores modernos, os tiranos exerciam um poder arbitrário e ilimitado, recorrendo às armas.
Ao contrário dos outros termos examinados, autocracia não tem uma conotação histórica precisa. É um termo abstrato que se usa com dois significados principais: um particular e um geral. No particular, ele denota um grau máximo de absolutismo. Uma autocracia é um governo absoluto que detém um poder ilimitado sobre seus súditos. Sob este ponto de vista, um monarca absoluto é um autocrata, mas ele pode não sê-lo, quando divide o poder alguns colaboradores que tenham condições de limitar sua vontade.
Em seu significado geral, o termo autocracia foi usado por alguns teóricos da política e do direito para designar todo tipo de governo antidemocrático ou não-democrático. Mas, nessa acepção, a palavra não obteve sucesso, nem na linguagem popular nem na linguagem técnica da filosofia ou da ciência política.
Autoritarismo
Autoritarismo também é um termo usado para designar todos os regimes que se contrapõem ao democrático. Por outro lado, modernamente, o significado é mais restrito e designa governos fortes que, porém, não chegam a constituir uma ditadura, pois possuem um grau relativamente moderado de mobilização popular e de participação política da sociedade. É o caso do governo de Hugo Chávez na Venezuela contemporânea, onde a oposição ao governo é severamente controlada.
Mas o autoritarismo deve ser diferenciado do totalitarismo. Este é o grau máximo de absolutismo nos regimes ditatoriais modernos, em que o Estado exerce total controle da vida dos cidadãos. Eles ocorreram em sistemas como o da Alemanha nazista, sob Hitler, e o da Rússia comunista, sob Stálin, em que a propaganda chegava a convencer o cidadão de que ele existia não para seu próprio benefício, mas para benefício do Estado. O resultado dessas duas ditaduras pode ser medido pelas cerca de 30 milhões de mortes que provocaram ao longo de aproximadamente duas décadas.
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação.
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 - Pedagogia & Comunicação
O conceito de ditadura se origina Roma antiga. Em latim, a palavra era "dictatura". Entretanto, o significado moderno do conceito é completamente diferente da instituição que ele designava na Antigüidade. De qualquer modo, uma comparação entre ditadura antiga e moderna pode ajudar a compreender melhor o sentido que o termo adquiriu nos dias de hoje.
Para começar, a ditadura romana era uma instituição de caráter extraordinário. Só era ativada em circunstâncias excepcionais, para fazer frente a situações de emergência, como uma crise interna ou uma guerra. O ditador era nomeado por um ou pelos dois cônsules - os chefes do governo romano -, de acordo com o senado e por processos definidos constitucionalmente. Da mesma maneira, também eram definidos os limites de sua atuação.
Ainda assim, os poderes do ditador eram muito amplos e seus decretos - o que ele "ditava" (e vem daí "ditadura") - tinham o valor de lei. Apesar disso, seus poderes não eram ilimitados: o ditador não podia revogar ou mudar a Constituição, declarar guerra, criar novos impostos para os cidadãos romanos, nem exercer o papel de juiz nos casos de direito civil. Finalmente, a ditadura tinha sua duração explicitamente fixada: não podia durar mais de seis meses.
Um poder sem limites
Atualmente, a expressão ditadura serve para designar os regimes de governo não-democráticos ou antidemocráticos, isto é, aqueles onde não há participação popular, ou onde isso ocorre de maneira muito restrita. Nesse sentido, de igual à ditadura romana, ela só apresenta uma coisa: a concentração de poder nas mãos do ditador. Além disso, a ditadura moderna não é autorizada por regras constitucionais: ela se impõe de fato, pela força, subvertendo a ordem política que existia anteriormente.
Para piorar, a extensão do poder do ditador não está determinado pela Constituição nem sofre qualquer tipo de limites. Sua duração não está prevista de modo algum e pode se estender por décadas. No Brasil, por exemplo, a última ditadura foi de 1964 a 1985. Na Espanha, o general Francisco Franco tomou o governo em 1936 e só o deixou quando morreu, em 1975, numa ditadura que durou cerca de 40 anos. Em Cuba, hoje, o ditador Fidel Castro já completou 46 anos no poder.
A ditadura moderna implica, antes de mais nada, a concentração de poder. Em geral, num órgão já existente do Estado (via de regra, o poder Executivo). Estende também o poder além dos limites normais, por exemplo, suspendendo os direitos dos cidadãos. Deixa ainda o poder livre dos freios e dos controles estabelecidos pelas leis. Foi o que aconteceu no Brasil, por exemplo, a partir de 1968, quando o Ato Institucional no. 5, deu imensos poderes ao Executivo, como o de fechar o Legislativo, caso lhe fosse conveniente.
Por tudo isso, a ditadura moderna tem uma conotação inquestionavelmente negativa. Designa, como já se disse, os regimes não-democráticos ou antidemocráticos. É um contraponto à democracia, na qual o poder se encontra dividido em várias instâncias de poder, equilibrando-se Executivo, Legislativo e Judiciário. Num regime democrático, a transmissão da autoridade política é feita de baixo para cima, através da manifestação popular, via eleições. Na ditadura, além da concentração do poder numa instância exclusiva, a transmissão da autoridade política ocorre de cima para baixo, a partir da decisão do ditador ou dos ditadores.
Conservadores e revolucionários
Nos dias de hoje, quanto às finalidades com que são instaladas, podem-se distinguir dois tipos de ditadura: 1) as conservadoras, cuja finalidade é defender o satus quo dos perigos de uma mudança. Esse foi o caso das várias ditaduras militares que se estabeleceram na América Latina nos anos 1960 e 70: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai... 2) as revolucionárias, que visam abater ou minar, de forma radical, a velha ordem político-social e introduzir uma ordem nova, como foi o governo instaurado pela Convenção Nacional francesa, em 1793, que pôs fim à monarquia, ou ainda o próprio governo cubano, depois de 1959, que instaurou o socialismo no país.
Entretanto, existem outros termos usados para denominar regimes não-democráticos. Dentre eles, os mais importantes são despotismo, absolutismo, tirania, autocracia e autoritarismo. No vocabulário comum e mesmo no vocabulário político do dia-a-dia, esses termos são freqüentemente usados como sinônimos. Na filosofia política, porém, podem-se estabelecer distinções entre eles.
Despotismo
Despotismo, num primeiro sentido, refere-se ao despotismo oriental, da Antigüidade. Tratava-se do governo monocrático (monos = um só), típico da Ásia e da África e que era oposto à democracia grega. O filósofo Aristóteles o chamava de despótico, comparando-o ao poder que o patrão (em grego, despotes) exerce sobre o escravo.
Na Idade Moderna, o pensador francês Montesquieu (1689-1755) retomou o conceito, definindo-o como o governo no qual "um, sozinho, sem leis nem freios, arrasta tudo e todos no sabor de suas vontades e de seus caprichos". Na Europa dos séculos 17 e 18, despotismo serviu para designar os regimes de monarquia absolutista, que poderia ser considerado bom ou mal, de acordo com a maneira com que o monarca exerce o poder.
É nesse sentido que se fala em despotismo esclarecido, no século 18, quando o monarca, embora detenha o poder absoluto, é "instruído por sábios conselheiros sobre a existência das verdadeiras leis, gozando da plenitude de seus poderes para aplicá-las e promover, agindo assim, o bem estar e a felicidade de seus súditos".
Tanto o despotismo quanto o absolutismo são conceitos que se aplicam a monarquias hereditárias, consideradas legítimas pelos súditos, que integram uma sociedade tradicional. Nela, a participação política da grande maioria da população é nula. A monarquia é vista como a única forma de governo possível, por ter as suas raízes no passado mitológico ou na origem divina.
Tirania e autocracia
Tirania era o governo de exceção na Grécia antiga. Assemelhava-se à ditadura moderna, pois nasciam das crises e da desagregação da democracia ou de algum regime político tradicional. O tirano não era um monarca legítimo, mas o chefe de alguma fração política, que impunha pela força o próprio poder a todos os outros partidos. Da mesma forma que os ditadores modernos, os tiranos exerciam um poder arbitrário e ilimitado, recorrendo às armas.
Ao contrário dos outros termos examinados, autocracia não tem uma conotação histórica precisa. É um termo abstrato que se usa com dois significados principais: um particular e um geral. No particular, ele denota um grau máximo de absolutismo. Uma autocracia é um governo absoluto que detém um poder ilimitado sobre seus súditos. Sob este ponto de vista, um monarca absoluto é um autocrata, mas ele pode não sê-lo, quando divide o poder alguns colaboradores que tenham condições de limitar sua vontade.
Em seu significado geral, o termo autocracia foi usado por alguns teóricos da política e do direito para designar todo tipo de governo antidemocrático ou não-democrático. Mas, nessa acepção, a palavra não obteve sucesso, nem na linguagem popular nem na linguagem técnica da filosofia ou da ciência política.
Autoritarismo
Autoritarismo também é um termo usado para designar todos os regimes que se contrapõem ao democrático. Por outro lado, modernamente, o significado é mais restrito e designa governos fortes que, porém, não chegam a constituir uma ditadura, pois possuem um grau relativamente moderado de mobilização popular e de participação política da sociedade. É o caso do governo de Hugo Chávez na Venezuela contemporânea, onde a oposição ao governo é severamente controlada.
Mas o autoritarismo deve ser diferenciado do totalitarismo. Este é o grau máximo de absolutismo nos regimes ditatoriais modernos, em que o Estado exerce total controle da vida dos cidadãos. Eles ocorreram em sistemas como o da Alemanha nazista, sob Hitler, e o da Rússia comunista, sob Stálin, em que a propaganda chegava a convencer o cidadão de que ele existia não para seu próprio benefício, mas para benefício do Estado. O resultado dessas duas ditaduras pode ser medido pelas cerca de 30 milhões de mortes que provocaram ao longo de aproximadamente duas décadas.
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação.
Deus
Reflexão sobre a divindade integra a filosofia
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação
Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), a filosofia nasce de uma atitude de assombro do homem em relação às coisas do mundo, um estado de encanto e surpresa, que o leva a procurar explicações para elas. Desde que as explicações mitológicas (sobrenaturais) para a origem e o existir do mundo e das coisas deixaram de satisfazer aos primeiros pensadores, a filosofia se desenvolveu na Grécia antiga. Os filósofos buscavam outras explicações, de caráter natural, para o que viam ao seu redor.
Nessa procura pelas explicações, no entanto, nunca deixaram de esbarrar no "sobrenatural", em algo que estava além do visível, quando não do pensável. Por conseguinte, Deus - seja lá o que se entenda por esta palavra - foi sempre uma das grandes questões filosóficas ao longo dos últimos 2,5 milênios.
A reflexão sobre Deus é quase inerente à filosofia. Ao contrário da ciência, que, voltada para objetos específicos, pode dispensar interrogações sobre Deus e concentrar-se no seu alvo, a filosofia é mais ambiciosa e procura respostas para questões que, num certo sentido, as ciências nem precisam se colocar, para verificar leis ou dimensões dos fenômenos naturais (não custa relembrar que o radical de fenômeno, em grego antigo, significa "aparência").
Quatro linhas de raciocínio
Para a filosofia e para o ser humano, porém, Deus sempre foi um imenso ponto de interrogação. Quem ou o que é Deus? Como se pode ou não provar sua existência? Foram essas as questões fundamentais que os filósofos, a partir dos pré-socráticos, se colocaram. Ao serem respondidas - ao longo de mais de dois milênios da história da filosofia -, quatro linhas de raciocínio foram estabelecidas. Elas se desenvolveram de acordo com:
1) A relação de Deus com o mundo, considerando-se Deus como causa do mundo;
2) A relação de Deus com a ordem moral, identificando-se Deus com o Bem;
3) A relação de Deus consigo mesmo, pois, de acordo com as diversas concepções, ele pode ser um ou vários entes;
4) A relação de Deus com os homens ou quais os acessos do homem a Deus.
O primeiro motor
Examinando a primeira relação, nota-se que ela foi entendida de três modos diferentes. O mais antigo deles, encontrado em Anaxágoras (c. 500-428 a.C.), foi também desenvolvido por Platão (428-347 a.C.) e Aristóteles. Platão concebe Deus como "artífice do mundo", porém com um poder limitado pelo modelo que ele imita: o mundo das idéias ou das realidades eternas.
Já Aristóteles considera que Deus é o "primeiro motor" ao qual necessariamente se filiava a cadeia de todos os movimentos, pois tudo o que se move é movido por outra coisa. Não pode existir efeito sem causa.
No entanto, para Aristóteles, além de causa primeira, Deus é também a causa final que cria a ordem do universo. O filósofo compara o universo a um exército "que consiste de sua ordem e de seu comandante, mas especialmente deste último, pois ele não é o resultado da ordem, mas a ordem depende dele". (Note a sutileza do raciocínio.)
Panteísmo
O segundo modo da primeira relação não exclui o anterior, mas parte da proposição de que a natureza do mundo é um prolongamento da vida de Deus. Platão, por exemplo, chamava o mundo de "Deus gerado [por ele mesmo]". Essa concepção se concretiza no panteísmo (o prefixo grego pan significa "cada um, todos, totalidade") que cria um laço entre Deus e o universo: ambos se identificam, são concebidos como uma única realidade integrada.
O panteísmo adquiriu forma com os estóicos, mas amadureceu entre os neoplatônicos, com destaque para Plotino (205-270). Este filósofo considera o mundo como uma emanação de Deus, assim como ocorre com uma luz em relação a sua fonte. Para Plotino, Deus não só é superior ao mundo, mas também inexprimível em termos do mundo.
Ele só é apreensível ao êxtase místico. Por isso, ele não pode ser objeto de uma ciência positiva que determine sua natureza. Muito pelo contrário, só uma teologia negativa ajuda a compreendê-lo - a partir do que ele não é.
Concepções panteístas se manifestam não só em filósofos da Antiguidade, mas também da Idade Média, como Escoto Erígena (819-877) e Nicolau de Cusa (1401-1464); da Idade Moderna, como Espinosa (1632-1677) e Hegel (1770-1831), e de filósofos do século 20, como Alfred Whitehead (1861-1947) e Henri Bergson (1859-1941).
Cristianismo
Finalmente, há filósofos que consideram Deus como o "criador" do mundo, o Ser do qual provêm os outros seres. Esta visão advém do cristianismo e coloca a fé como coadjuvante da razão. Com Cristo, Deus se revelou ao homem e é a partir dessa crença (não racional) que a razão entra em cena para solucionar os problemas postos pela realidade.
Essa linha filosófica acentua a eternidade e a imutabilidade de Deus diante da temporalidade e da mutabilidade do mundo. Antes da criação não existia o tempo. Portanto, nem faz sentido falar em antes ou perguntar-se o que Deus fazia então, diz Santo Agostinho (354-430), em suas "Confissões" (o físico inglês contemporâneo Stephen Hawking, autor de "Uma Breve História do Tempo", de certa forma concorda com isso, pois considera que o tempo passou a existir após o Big Bang).
Contemporaneamente, desenvolveu-se a impressão de que a filosofia está ligada ao ateísmo ou, no mínimo, que ela se opõe aos dogmas cristãos. Essa impressão, porém, não tem fundamento histórico: filósofos como Kant e Hegel, por exemplo, estavam longe de ser ateus, da mesma maneira que Kierkegaard (1813-1855) foi cristão e filosofou a partir das crenças cristãs. Já Bergson, de origem judaica, aproximou-se do catolicismo ao final de sua vida.
Deus e a ordem moral
Quanto à segunda relação - Deus com a ordem moral -, também se podem distinguir três pontos de vista básicos.
1) Deus é a garantia da ordem moral no pensamento do iluminista alemão Immanuel Kant (1724-1804), filósofo que é um divisor de águas na história dessa disciplina. Para Kant, em termos metafísicos ou teóricos, no âmbito da razão pura, aquela que orienta uma ciência como a matemática, por exemplo, é impossível demonstrar a existência ou a inexistência de Deus.
"Deus é um postulado da razão prática [aquela que orienta a ação], pois torna possível a união da virtude e da felicidade, em que consiste o sumo bem que é o objeto da lei moral". Em termos mais simples: só de uma vontade perfeita, a divina, se pode esperar o bem supremo que a lei moral nos obriga a ter como objetivo de nossos esforços.
2) Muito antes de Kant, porém, os estóicos já identificavam Deus com a própria ordem moral, considerando Deus como Providência e Destino, uma entidade de ordem racional que compreende em si mesma, os eventos do mundo e as ações do homem. Essa visão também pode ser encontrada em Hegel que considera a história do mundo o plano da Providência.
3) O último ponto de vista, essencialmente cristão, coloca Deus como criador da ordem moral e, nesse sentido, atribui ao homem o livre arbítrio de segui-la ou não. Nesses termos, filosofia e teologia se confundem, mas as duas conseguem uma expressão perfeita, em termos éticos, nas palavras de São Paulo: "tudo é permitido, mas nem tudo me convém".
Politeísmo e monoteísmo
A terceira linha de raciocínio examina a relação de Deus consigo mesmo ou a de Deus com a Divindade. Dela decorrem as concepções politeístas e monoteístas. O politeísmo concebe Deus como diferente da divindade, assim como um homem é diferente da humanidade. Portanto, podem existir muitos deuses.
As doutrinas que admitem qualquer distinção entre Deus e a divindade têm em mente que esta pode ser compartilhada por muitos entes. O próprio Aristóteles, o da "causa primeira", acreditava que a demonstração da existência de um primeiro motor servia também para a existência de tantos motores quanto são os movimentos das esferas celestes, que eram 47 ou 55, respectivamente ao ponto de vista de dois astrônomos em quem o filósofo acreditava.
Além disso, é interessante notar que Plotino - aquele que falava acerca de um Deus que se emana no mundo - não identificava unidade com unicidade. A unidade também contém a multiplicidade para o sábio neoplatônico. Premissa maior: Deus é uno. Premissa menor: Todas as coisas dele emanam. Conclusão: Deus não é único. Um silogismo perfeito.
Também não se pode deixar de destacar o fato de o politeísmo não se restringir ao paganismo da Antiguidade. O panteísmo de filósofos modernos ou contemporâneos não deixa de ser um politeísmo. O empírico escocês David Hume (1711-1776) atribuiu valor positivo ao politeísmo, que é um verdadeiro obstáculo à intolerância religiosa. Se há muitos deuses na minha religião, seria uma contradição eu me opor aos deuses de outras crenças religiosas (repare na atualidade dessa idéia, num mundo como o nosso em que o fanatismo se transforma em terríveis espetáculos terroristas).
São Tomás de Aquino
Por outro lado, quando se identificam Deus e divindade, sendo esta uma característica que só se pode atribuir ao próprio Deus, eis o monoteísmo, advogado pelo filósofo cristão Tomás de Aquino (1227-1274), na "Suma Teológica", uma obra célebre. Segundo São Tomás, também chamado de "doutor angélico", aquilo que torna algo singular, único, não é comunicável a outras coisas.
Mais ainda, aquilo que torna Sócrates homem não se confunde com aquilo que torna Sócrates somente o homem que ele, e mais ninguém, é. Do contrário, não poderia haver mais de um Sócrates ou mais de um homem. Ora, esse é precisamente o caso de Deus. Além disso, como a divindade é incomunicável, ela não pode ser compartilhada por mais de um Deus. Conclusão: há um só Deus (Sua trindade é um mistério impenetrável).
Essas considerações sobre o monoteísmo e o politeísmo devem levá-lo a filosofar um pouco: politeísmo não é a manifestação de mentalidades primitivas, em termos culturais, como se costuma pensar. Ele se apresenta mais como uma alternativa filosófica legítima, que talvez ajude a inovar o conceito de Deus.
O acesso a Deus
Finalmente, na quarta relação - do acesso do homem a Deus - também se distinguem três pontos de vista: a) o conhecimento de Deus é alcançado pela iniciativa do homem, através da filosofia, da especulação racional sobre Deus; b) o conhecimento só se dá através da revelação divina; c) a revelação é a conclusão do esforço do homem para chegar a Deus.
Sem dúvida, o primeiro ponto de vista é o mais filosófico, enquanto os outros são mais religiosos. Mesmo assim, o princípio de que a revelação não anula nem inutiliza a razão está na base de toda a filosofia escolástica da Idade Média. No Renascimento, a revelação inspira e sustenta a racionalidade. Fé e razão colaboram entre si, não são uma antítese.
No séculos 16, 17 e 18, foi feita progressivamente uma distinção entre a idéia de revelação histórica e revelação natural, que ocorre através da razão. No Romantismo, a revelação é uma manifestação de Deus na realidade natural e histórica, como pensaram Hegel e Schelling (1775-1854). O filósofo e político italiano Vincenzo Gioberti (1801-1852) considera como base do conhecimento a intuição, que, segundo ele, é a revelação imediata de Deus ao homem.
A cifra da transcendência
Contemporaneamente, o ateísmo ganhou força, mais no âmbito científico do que filosófico. Grande parte das reflexões filosóficas atuais, quando não cristãs, têm caráter panteísta. Apesar de se tratar de um conceito datado do século 18, há quem fale mais recentemente num panenteísmo, uma conciliação entre o monoteísmo e o panteísmo, que admite que tudo o que existe, existe em Deus, consistindo em revelação e realização de Deus.
Para terminar, é bom lembrar de linhas de pensamento que põem ênfase na transcendência de deus. Para Karl Jaspers (1883-1969) a inatingibilidade de Deus, o fracasso inevitável do homem em sua tentativa de alcançar a transcendência é a única revelação possível. Esta é o que ele chama de a "cifra" da transcendência, o símbolo sob o qual o transcendente pode estar presente na existência humana, sem adquirir caracteres objetivos, e, simultaneamente, sem fazer parte da nossa vida subjetiva.
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação. olivieri@pagina3ped.com
Antonio Carlos Olivieri*
Da Página 3 Pedagogia & Comunicação
Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), a filosofia nasce de uma atitude de assombro do homem em relação às coisas do mundo, um estado de encanto e surpresa, que o leva a procurar explicações para elas. Desde que as explicações mitológicas (sobrenaturais) para a origem e o existir do mundo e das coisas deixaram de satisfazer aos primeiros pensadores, a filosofia se desenvolveu na Grécia antiga. Os filósofos buscavam outras explicações, de caráter natural, para o que viam ao seu redor.
Nessa procura pelas explicações, no entanto, nunca deixaram de esbarrar no "sobrenatural", em algo que estava além do visível, quando não do pensável. Por conseguinte, Deus - seja lá o que se entenda por esta palavra - foi sempre uma das grandes questões filosóficas ao longo dos últimos 2,5 milênios.
A reflexão sobre Deus é quase inerente à filosofia. Ao contrário da ciência, que, voltada para objetos específicos, pode dispensar interrogações sobre Deus e concentrar-se no seu alvo, a filosofia é mais ambiciosa e procura respostas para questões que, num certo sentido, as ciências nem precisam se colocar, para verificar leis ou dimensões dos fenômenos naturais (não custa relembrar que o radical de fenômeno, em grego antigo, significa "aparência").
Quatro linhas de raciocínio
Para a filosofia e para o ser humano, porém, Deus sempre foi um imenso ponto de interrogação. Quem ou o que é Deus? Como se pode ou não provar sua existência? Foram essas as questões fundamentais que os filósofos, a partir dos pré-socráticos, se colocaram. Ao serem respondidas - ao longo de mais de dois milênios da história da filosofia -, quatro linhas de raciocínio foram estabelecidas. Elas se desenvolveram de acordo com:
1) A relação de Deus com o mundo, considerando-se Deus como causa do mundo;
2) A relação de Deus com a ordem moral, identificando-se Deus com o Bem;
3) A relação de Deus consigo mesmo, pois, de acordo com as diversas concepções, ele pode ser um ou vários entes;
4) A relação de Deus com os homens ou quais os acessos do homem a Deus.
O primeiro motor
Examinando a primeira relação, nota-se que ela foi entendida de três modos diferentes. O mais antigo deles, encontrado em Anaxágoras (c. 500-428 a.C.), foi também desenvolvido por Platão (428-347 a.C.) e Aristóteles. Platão concebe Deus como "artífice do mundo", porém com um poder limitado pelo modelo que ele imita: o mundo das idéias ou das realidades eternas.
Já Aristóteles considera que Deus é o "primeiro motor" ao qual necessariamente se filiava a cadeia de todos os movimentos, pois tudo o que se move é movido por outra coisa. Não pode existir efeito sem causa.
No entanto, para Aristóteles, além de causa primeira, Deus é também a causa final que cria a ordem do universo. O filósofo compara o universo a um exército "que consiste de sua ordem e de seu comandante, mas especialmente deste último, pois ele não é o resultado da ordem, mas a ordem depende dele". (Note a sutileza do raciocínio.)
Panteísmo
O segundo modo da primeira relação não exclui o anterior, mas parte da proposição de que a natureza do mundo é um prolongamento da vida de Deus. Platão, por exemplo, chamava o mundo de "Deus gerado [por ele mesmo]". Essa concepção se concretiza no panteísmo (o prefixo grego pan significa "cada um, todos, totalidade") que cria um laço entre Deus e o universo: ambos se identificam, são concebidos como uma única realidade integrada.
O panteísmo adquiriu forma com os estóicos, mas amadureceu entre os neoplatônicos, com destaque para Plotino (205-270). Este filósofo considera o mundo como uma emanação de Deus, assim como ocorre com uma luz em relação a sua fonte. Para Plotino, Deus não só é superior ao mundo, mas também inexprimível em termos do mundo.
Ele só é apreensível ao êxtase místico. Por isso, ele não pode ser objeto de uma ciência positiva que determine sua natureza. Muito pelo contrário, só uma teologia negativa ajuda a compreendê-lo - a partir do que ele não é.
Concepções panteístas se manifestam não só em filósofos da Antiguidade, mas também da Idade Média, como Escoto Erígena (819-877) e Nicolau de Cusa (1401-1464); da Idade Moderna, como Espinosa (1632-1677) e Hegel (1770-1831), e de filósofos do século 20, como Alfred Whitehead (1861-1947) e Henri Bergson (1859-1941).
Cristianismo
Finalmente, há filósofos que consideram Deus como o "criador" do mundo, o Ser do qual provêm os outros seres. Esta visão advém do cristianismo e coloca a fé como coadjuvante da razão. Com Cristo, Deus se revelou ao homem e é a partir dessa crença (não racional) que a razão entra em cena para solucionar os problemas postos pela realidade.
Essa linha filosófica acentua a eternidade e a imutabilidade de Deus diante da temporalidade e da mutabilidade do mundo. Antes da criação não existia o tempo. Portanto, nem faz sentido falar em antes ou perguntar-se o que Deus fazia então, diz Santo Agostinho (354-430), em suas "Confissões" (o físico inglês contemporâneo Stephen Hawking, autor de "Uma Breve História do Tempo", de certa forma concorda com isso, pois considera que o tempo passou a existir após o Big Bang).
Contemporaneamente, desenvolveu-se a impressão de que a filosofia está ligada ao ateísmo ou, no mínimo, que ela se opõe aos dogmas cristãos. Essa impressão, porém, não tem fundamento histórico: filósofos como Kant e Hegel, por exemplo, estavam longe de ser ateus, da mesma maneira que Kierkegaard (1813-1855) foi cristão e filosofou a partir das crenças cristãs. Já Bergson, de origem judaica, aproximou-se do catolicismo ao final de sua vida.
Deus e a ordem moral
Quanto à segunda relação - Deus com a ordem moral -, também se podem distinguir três pontos de vista básicos.
1) Deus é a garantia da ordem moral no pensamento do iluminista alemão Immanuel Kant (1724-1804), filósofo que é um divisor de águas na história dessa disciplina. Para Kant, em termos metafísicos ou teóricos, no âmbito da razão pura, aquela que orienta uma ciência como a matemática, por exemplo, é impossível demonstrar a existência ou a inexistência de Deus.
"Deus é um postulado da razão prática [aquela que orienta a ação], pois torna possível a união da virtude e da felicidade, em que consiste o sumo bem que é o objeto da lei moral". Em termos mais simples: só de uma vontade perfeita, a divina, se pode esperar o bem supremo que a lei moral nos obriga a ter como objetivo de nossos esforços.
2) Muito antes de Kant, porém, os estóicos já identificavam Deus com a própria ordem moral, considerando Deus como Providência e Destino, uma entidade de ordem racional que compreende em si mesma, os eventos do mundo e as ações do homem. Essa visão também pode ser encontrada em Hegel que considera a história do mundo o plano da Providência.
3) O último ponto de vista, essencialmente cristão, coloca Deus como criador da ordem moral e, nesse sentido, atribui ao homem o livre arbítrio de segui-la ou não. Nesses termos, filosofia e teologia se confundem, mas as duas conseguem uma expressão perfeita, em termos éticos, nas palavras de São Paulo: "tudo é permitido, mas nem tudo me convém".
Politeísmo e monoteísmo
A terceira linha de raciocínio examina a relação de Deus consigo mesmo ou a de Deus com a Divindade. Dela decorrem as concepções politeístas e monoteístas. O politeísmo concebe Deus como diferente da divindade, assim como um homem é diferente da humanidade. Portanto, podem existir muitos deuses.
As doutrinas que admitem qualquer distinção entre Deus e a divindade têm em mente que esta pode ser compartilhada por muitos entes. O próprio Aristóteles, o da "causa primeira", acreditava que a demonstração da existência de um primeiro motor servia também para a existência de tantos motores quanto são os movimentos das esferas celestes, que eram 47 ou 55, respectivamente ao ponto de vista de dois astrônomos em quem o filósofo acreditava.
Além disso, é interessante notar que Plotino - aquele que falava acerca de um Deus que se emana no mundo - não identificava unidade com unicidade. A unidade também contém a multiplicidade para o sábio neoplatônico. Premissa maior: Deus é uno. Premissa menor: Todas as coisas dele emanam. Conclusão: Deus não é único. Um silogismo perfeito.
Também não se pode deixar de destacar o fato de o politeísmo não se restringir ao paganismo da Antiguidade. O panteísmo de filósofos modernos ou contemporâneos não deixa de ser um politeísmo. O empírico escocês David Hume (1711-1776) atribuiu valor positivo ao politeísmo, que é um verdadeiro obstáculo à intolerância religiosa. Se há muitos deuses na minha religião, seria uma contradição eu me opor aos deuses de outras crenças religiosas (repare na atualidade dessa idéia, num mundo como o nosso em que o fanatismo se transforma em terríveis espetáculos terroristas).
São Tomás de Aquino
Por outro lado, quando se identificam Deus e divindade, sendo esta uma característica que só se pode atribuir ao próprio Deus, eis o monoteísmo, advogado pelo filósofo cristão Tomás de Aquino (1227-1274), na "Suma Teológica", uma obra célebre. Segundo São Tomás, também chamado de "doutor angélico", aquilo que torna algo singular, único, não é comunicável a outras coisas.
Mais ainda, aquilo que torna Sócrates homem não se confunde com aquilo que torna Sócrates somente o homem que ele, e mais ninguém, é. Do contrário, não poderia haver mais de um Sócrates ou mais de um homem. Ora, esse é precisamente o caso de Deus. Além disso, como a divindade é incomunicável, ela não pode ser compartilhada por mais de um Deus. Conclusão: há um só Deus (Sua trindade é um mistério impenetrável).
Essas considerações sobre o monoteísmo e o politeísmo devem levá-lo a filosofar um pouco: politeísmo não é a manifestação de mentalidades primitivas, em termos culturais, como se costuma pensar. Ele se apresenta mais como uma alternativa filosófica legítima, que talvez ajude a inovar o conceito de Deus.
O acesso a Deus
Finalmente, na quarta relação - do acesso do homem a Deus - também se distinguem três pontos de vista: a) o conhecimento de Deus é alcançado pela iniciativa do homem, através da filosofia, da especulação racional sobre Deus; b) o conhecimento só se dá através da revelação divina; c) a revelação é a conclusão do esforço do homem para chegar a Deus.
Sem dúvida, o primeiro ponto de vista é o mais filosófico, enquanto os outros são mais religiosos. Mesmo assim, o princípio de que a revelação não anula nem inutiliza a razão está na base de toda a filosofia escolástica da Idade Média. No Renascimento, a revelação inspira e sustenta a racionalidade. Fé e razão colaboram entre si, não são uma antítese.
No séculos 16, 17 e 18, foi feita progressivamente uma distinção entre a idéia de revelação histórica e revelação natural, que ocorre através da razão. No Romantismo, a revelação é uma manifestação de Deus na realidade natural e histórica, como pensaram Hegel e Schelling (1775-1854). O filósofo e político italiano Vincenzo Gioberti (1801-1852) considera como base do conhecimento a intuição, que, segundo ele, é a revelação imediata de Deus ao homem.
A cifra da transcendência
Contemporaneamente, o ateísmo ganhou força, mais no âmbito científico do que filosófico. Grande parte das reflexões filosóficas atuais, quando não cristãs, têm caráter panteísta. Apesar de se tratar de um conceito datado do século 18, há quem fale mais recentemente num panenteísmo, uma conciliação entre o monoteísmo e o panteísmo, que admite que tudo o que existe, existe em Deus, consistindo em revelação e realização de Deus.
Para terminar, é bom lembrar de linhas de pensamento que põem ênfase na transcendência de deus. Para Karl Jaspers (1883-1969) a inatingibilidade de Deus, o fracasso inevitável do homem em sua tentativa de alcançar a transcendência é a única revelação possível. Esta é o que ele chama de a "cifra" da transcendência, o símbolo sob o qual o transcendente pode estar presente na existência humana, sem adquirir caracteres objetivos, e, simultaneamente, sem fazer parte da nossa vida subjetiva.
*Antonio Carlos Olivieri é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Pedagogia & Comunicação. olivieri@pagina3ped.com
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