Eduardo Bueno
Rio de Janeiro, Objetiva,1998
A Viagem do Descobrimento
Flávio Santos
Dentro do contexto de comemoração dos 500 anos da chegada oficial dos portugueses ao Brasil, inúmeros temas que envolvem esta chegada estão sendo colocados em revisão. Alguns já bastante discutidos, mas que ainda não foram esgotados, como é o caso da antecedência e intencionalidade do achamento da Terra de Vera Cruz.
É para contribuir com essa discussão que o jornalista e escritor Eduardo Bueno lança a Coleção Terra Brasilis, onde busca o entendimento do universo que envolvia as primeira expedições ao Brasil, reconstruindo através de relatos, diários de bordo e cartas a vida, experiências e as impressões dos homens que se lançaram ao mar em busca do conhecido ( as especiarias das Índias ) por caminhos desconhecidos( o Mar Tenebroso ). A coleção se divide em dois volumes: O primeiro volume com o título A viagem do descobrimento e o segundo Náufragos, Traficantes e Degredados. Aqui serão analisados apenas os pontos levantados no primeiro volume.
Eduardo Bueno, faz uma descrição dos preparativos para a viagem encampada por Cabral, relatando os indícios de terras percebidos durante a viagem de Vasco da Gama e a confirmação deles pela expedição de Cabral. Segundo o autor, esta expedição havia sido preparada com o intuito de demostrar o poderio militar e o fausto de Portugal ao Samorim de Calicute, que havia desdenhado da expedição de Vasco da Gama, ocasionando os conflitos com os mercadores árabes, o que comprometia os interesse mercantis de Portugal naquela região. Assim, Cabral inicialmente deveria cumprir a tarefas de impressionar o Samorim de Calicute – pelo luxo e pelas armas - e a partir daí estabelecer o comércio de especiarias. Entretanto, no meio do caminho, a expedição de Cabral deveria realizar a manobra " voltar do mar " para assim conseguir atravessar, com êxito, o Cabo da Boa Esperança. É neste ponto que se instaura a polêmica em torno da chegada dos portugueses ao Novo mundo.
A " volta ao mar " foi uma manobra descoberta acidentalmente por Bartolomeu Dias por ocasião de sua tentativa de concluir o périplo africano e atingir Calicute nos ano de 1487 e 1488. Uma tormenta afasta sua expedição da costa empurrando-a para o sul, ao cessar a tempestade constata ter conseguido atravessar o então Cabo das Tormentas, mas é forçado por um motim a retornar a Portugal. No seu retorno, transmite as suas experiências a Vasco da Gama que se preparava para empreender a sua viagem. Na execução da manobra, Vasco da Gama se aproxima do continente, percebe os indícios de terra, mas segue viagem. Quando em Portugal, Vasco da Gama relata ter avistado sinais de terra e, segundo E. Bueno, embora "(...) sua missão fosse instalar um entreposto português no coração do reino das especiarias, em Calicute, na Índia, nada impedia Cabral de, naquele instante, prosseguir mais algumas léguas para oeste (...)" [1].
Como resultado deste desimpedimento, a esquadra de Cabral avista nas "horas de vésperas" do dia 22 de abril o monte (posteriormente) Pascoal. Estava achada a terra que seria chamada Brasil.
Eduardo Bueno, assumindo um posicionamento favorável à tese da intencionalidade portuguesa no achamento do Brasil, argumenta que sua existência já era prevista em Portugal desde o final do século XV [2]. Sendo assim, considera a intencionalidade dos portugueses indiscutível, não ocorrendo o mesmo com a questão da antecedência [3]. Embora não fosse possível negar a presença de navegadores espanhóis no litoral norte do atual Brasil meses antes de Cabral, E. Bueno, contesta a antecedência em dois anos de Duarte Pacheco em relação a esquadra de Cabral, afirmando-a produto de uma obscura passagem extraída por Pereira da Silva do Esmeraldo de Situ Orbis.
A viagem do descobrimento, é uma obra de fácil leitura em que o autor se esmera em fornecer informações adicionais ao texto principal nas notas do canto da página, acompanhadas sempre de ilustrações que igualmente ajudam no entendimento da abordagem do autor. Sobre o conteúdo do trabalho não se pode dizer que traga um novo olhar ou surpreenda com alguma informação ainda inédita. Ela não é uma obra que se pretenda à uma discussão ou à polêmica, ao contrário, sua intenção é levar ao grande público uma versão da História do descobrimento. Eduardo Bueno, prefere manter-se fiel à visão oficial, já consolidada pela insistente repetição, fazendo coro nas vozes que aclamam Cabral como o grande descobridor e os portugueses como os reveladores dos caminhos para novas conquistas.
De certa forma o autor trata o tema como se fosse novidade e, o que é pior, pelo subtítulo do livro - "a verdadeira história doa expedição de Cabral" – ele pretender ter a última palavra sobre o assunto. Não obstante ser um bom trabalho de reconstituição histórica, o autor desperta no leitor uma expectativa que acaba por ser frustrada. Essa pretensão de relatar a " verdadeira história", pode ser percebida por dois ângulos. O primeiro ideológico, o de reafirmar uma versão da conquista portuguesa de uma ótica conservadora e ainda dominante no seio das elites: a cultura e a civilidade européia vieram resgatar os autóctones do Novo Mundo de sua barbárie e ignominia. Essa forma de pensar o Brasil a partir do ponto de vista da inferioridade e do complexo de colonizado, está muito presente na forma dos brasileiros perceberem a sua sociedade. Afinal, o que é bom vem do primeiro mundo, não é? O segundo ângulo de análise, é que ao considerar a sua obra a "verdadeira história", Eduardo Bueno, desconsidera os trabalhos que o antecederam, além de pretender esgotar o assunto. Será que o autor, desconhece ou não considera relevante o fato de que a verdade é sempre relativa, dependendo do prisma pelo qual se olhe?
Será que essa história relatada por E. Bueno é, em tudo, verdadeira para os marinheiros, degredados e os indianos? E os tupinambás, o que eles têm a dizer dessa viagem do descobrimento? Os olhares são múltiplos e condicionados pelos interesses do seu tempo histórico. Outros autores produziram outras histórias não menos verdadeiras que a apresentada por Eduardo Bueno, talvez com mais originalidade ou com maior problematização, mas igualmente passíveis de críticas e elogios[4].
NOTAS:
1 - BUENO, E. A viagem do descobrimento. P. 9.
2 - idem, p. 130.
3 - O prof. Ubitatan Araújo considera a discussão sobre antecedência e intencionalidade dos portugueses na chegada ao Brasil, produto do etnocentrismo brasileiro, superada pela historiografia do descobrimento. Para ele o foco das atenções está voltado para o processo de expansão européia por meio das navegações, no qual os portugueses cumpriram o seu papel - o de abrir caminhos e consolidar rotas – sendo substituído por outras potências européias que emergiram nas fases subsequentes do desenvolvimento do capitalismo. E, é dentro deste processo que prefere situar a chegada portuguesas às atuais terras brasileiras. Para maiores informações ver entrevista nesta edição.
4 - O leitor que quiser ter acesso a outras abordagens da História do Descobrimento, conferir: FONTANA, Riccardo. O Brasil de Américo Vespúcio. Brasília: Riccardo Fontana, UNB, 1995. GODINHO, Vitorino Magalhães. Os Descobrimentos e a Economia Mundial. 4 volumes. Lisboa: Editorial Provença, 1984. NOVAES, Adauto. A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Flávio Santos é Mestrando em História pela FFCH da Univ. Federal da Bahia
2 de fevereiro de 2010
Os Jacobinos Negros
C.L.R. James
Tradução de Afonso Teixeira Filho
Boitempo Editoria, 400 págs.
"Os Jacobinos Negros" narra a rebelião de escravos bem-sucedida que levou à criação do Haiti no século 19
Negritude em potência
Manolo Florentino
Os processos históricos geram inúmeros tratados e, igualmente, uma verdadeira legião de leitores insatisfeitos. "Ainda bem!", diriam os historiadores, zelosos em justificar a existência de seu próprio ofício.
Pois a verdade é que, longe de se constituir em prova da incapacidade profissional dos tratadistas ou da incúria de seus leitores, reescrever a história é um ato de ordem cultural -o que, de quebra, a torna muito próxima do mito.
Não surpreende que o trabalho do historiador se assemelhe mais à insana labuta de Sísifo do que ao utilitarismo de Hércules, por exemplo. Mas há temas inesgotáveis simplesmente por serem únicos, isto é, por não ensejarem qualquer paralelo. O processo desencadeado a partir da revolta de 1791, que culminou no surgimento do Estado soberano do Haiti (1804), é um deles -pela inusitada condição de única insurreição escrava vitoriosa desde a Antiguidade greco-romana até o fim dos tempos modernos.
Conta-se que a efetiva integração das Antilhas ao Atlântico escravista teve início nas primeiras décadas do século 17, quando os europeus passaram a ocupar Barbados, Guadalupe e Martinica. O padrão logo se estendeu para todas as ilhas menores do Caribe: a instalação mais de homens do que de mulheres, provenientes sobretudo da Inglaterra e da França, financiados por grandes companhias monopolistas que, em troca, se apropriavam dos frutos de seu trabalho por períodos de até sete anos consecutivos. Ao lado de uns poucos escravos, esses "servos brancos" constituíam o essencial da mão-de-obra empregada em propriedades não tão grandes assim, dedicadas especialmente à produção de tabaco, mas também de anil.
Tudo mudou com a rápida disseminação do cultivo da cana-de-açúcar. Em ilhas como Barbados, por exemplo, a concentração dos recursos foi tão violenta que, em pouco menos de 50 anos, o tamanho médio das fazendas multiplicou-se por dez, o número de proprietários brancos diminuiu em 90% e o de negros escravizados cresceu mais de seis vezes. Grandes propriedades, as maiores das Américas, detentoras de enormes quantidades de cativos (os plantéis caribenhos eram, na média, os mais extensos do continente), poucos proprietários brancos, reduzido número de libertos e de brancos pobres -tal foi o panorama que se impôs nas grandes ilhas ao longo do século 18, especialmente na Jamaica e em São Domingos (o antigo nome do Haiti). Este, por liderar a produção mundial de açúcar e de café, passou a ser conhecida como a "pérola do Caribe".
Tudo em seu lugar
Em 1790, às vésperas de regressar à Europa, o barão de Wimpffen era enfático em sua opinião sobre São Domingos: "Nesta terra, todos estão nos seus devidos lugares". Ledo engano. Meses depois estourava a revolução, sobre a qual muito se tem escrito nas academias francesas e anglo-saxãs. Quanto às suas origens, não é consenso que a enorme desproporção entre o número de escravos e o de brancos tenha estado na raiz dos acontecimentos. Afinal, na Jamaica de 1768 conviviam 170 mil cativos e apenas 18 mil brancos -isto é, os mesmos 10 por 1 observados em São Domingos pouco antes da insurreição que levou Toussaint L'Ouverture ao poder.
O veio mais fecundo tem sido rastrear a singular combinação desse panorama demográfico com a intensa ligação da ilha ao tráfico atlântico de escravos, a existência de um draconiano código legal ("Code Noir"), que promovia a radical exclusão dos negros, e a profunda cisão que a Revolução Francesa promoveu entre os brancos da colônia. Além disso, muito se tem insistido no poderoso papel do vodu, que aparava as arestas existentes entre as inúmeras etnias de africanos, entre os escravos e os libertos e entre os cativos e os milhares de quilombolas enfurnados nas matas, dando certa unidade às aspirações e práticas dos homens negros em geral.
Curiosa ironia: pesquisas recentes têm descoberto ter sido Toussaint, ele próprio, senhor de alguns escravos.
No que tange aos acontecimentos posteriores à proclamação da independência por Jean-Jacques Dessalines, poucos se assustam com o fato de se ter optado ali por uma economia camponesa, inserida apenas em circuitos mercantis ultralocalizados. Mas muito se tem insistido no brutal isolamento internacional imposto à nova nação, comparável apenas ao que atualmente é feito com Cuba. Era o resultado previsível do pavor verdadeiramente continental -em especial no Brasil- de que se repetissem alhures os inusitados acontecimentos do Haiti.
Mais política que história
Quase todos esses tópicos estão presentes em "Os Jacobinos Negros", a primeira tentativa de fôlego de interpretação marxista da revolução haitiana, escrita em 1938 por Cyril Lionel Robert James (1901-1989). Trata-se de obra mais política do que histórica -é principalmente um libelo contra a discriminação racial e em favor da afirmação do que mais tarde se chamou de ideologia da negritude.
Uma observação final: é simplesmente desconcertante que, entre nós, a tradução de um livro desse porte, cuja importância historiográfica reside sobretudo na força da sua narrativa, tenha ocorrido somente agora, 62 anos depois da primeira edição em inglês.
TRECHO
Toussaint era um homem íntegro. O homem em que havia se transformado pela Revolução Francesa exigia que fosse mantida a relação com a França da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da abolição da escravidão, indiscutivelmente. O significado da França revolucionária estava sempre em seus lábios, em suas declarações públicas, em sua correspondência e na intimidade espontânea de suas conversas particulares. Era o mais alto estádio da existência social que ele podia imaginar. Não era apenas a estrutura de sua mente. Ninguém à sua volta, além dele, tinha tanta consciência da necessidade prática de resolver o problema do atraso social e das primitivas condições de vida. Sendo o homem que era, por natureza e pela extensão e pela intensidade das novas experiências, que são privilégio de poucos, aquela era a maneira pela qual enxergava o mundo em que vivia. Sua atitude irreal para com os antigos senhores, na sua pátria e fora dela, provinha não de um humanitarismo ou de uma lealdade abstrata, mas do reconhecimento de que apenas eles tinham o que a sociedade de São Domingos precisava. Ele acreditava que poderia manipulá-los. (...) Se estava convencido de que São Domingos decairia sem as vantagens da conexão francesa, também estava certo de que a escravidão jamais poderia ser restaurada.
Entre essas duas certezas, (...) tornar-se-ia a personificação do vacilo. Foi a fidelidade à Revolução Francesa e a tudo que ela possibilitou, para a humanidade em geral e para o povo de São Domingos em particular, que o tornou no que ele era. Mas isso acabou por arruiná-lo no final. (...) Mas as observações dos fatos e as conclusões exigidas não devem obscurecer ou diminuir o verdadeiro caráter trágico do seu dilema, que é um dos mais extraordinários entre os registrados pela história.
Trecho de "Os Jacobinos Negros", de C.L.R. James
Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira) e "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).
Tradução de Afonso Teixeira Filho
Boitempo Editoria, 400 págs.
"Os Jacobinos Negros" narra a rebelião de escravos bem-sucedida que levou à criação do Haiti no século 19
Negritude em potência
Manolo Florentino
Os processos históricos geram inúmeros tratados e, igualmente, uma verdadeira legião de leitores insatisfeitos. "Ainda bem!", diriam os historiadores, zelosos em justificar a existência de seu próprio ofício.
Pois a verdade é que, longe de se constituir em prova da incapacidade profissional dos tratadistas ou da incúria de seus leitores, reescrever a história é um ato de ordem cultural -o que, de quebra, a torna muito próxima do mito.
Não surpreende que o trabalho do historiador se assemelhe mais à insana labuta de Sísifo do que ao utilitarismo de Hércules, por exemplo. Mas há temas inesgotáveis simplesmente por serem únicos, isto é, por não ensejarem qualquer paralelo. O processo desencadeado a partir da revolta de 1791, que culminou no surgimento do Estado soberano do Haiti (1804), é um deles -pela inusitada condição de única insurreição escrava vitoriosa desde a Antiguidade greco-romana até o fim dos tempos modernos.
Conta-se que a efetiva integração das Antilhas ao Atlântico escravista teve início nas primeiras décadas do século 17, quando os europeus passaram a ocupar Barbados, Guadalupe e Martinica. O padrão logo se estendeu para todas as ilhas menores do Caribe: a instalação mais de homens do que de mulheres, provenientes sobretudo da Inglaterra e da França, financiados por grandes companhias monopolistas que, em troca, se apropriavam dos frutos de seu trabalho por períodos de até sete anos consecutivos. Ao lado de uns poucos escravos, esses "servos brancos" constituíam o essencial da mão-de-obra empregada em propriedades não tão grandes assim, dedicadas especialmente à produção de tabaco, mas também de anil.
Tudo mudou com a rápida disseminação do cultivo da cana-de-açúcar. Em ilhas como Barbados, por exemplo, a concentração dos recursos foi tão violenta que, em pouco menos de 50 anos, o tamanho médio das fazendas multiplicou-se por dez, o número de proprietários brancos diminuiu em 90% e o de negros escravizados cresceu mais de seis vezes. Grandes propriedades, as maiores das Américas, detentoras de enormes quantidades de cativos (os plantéis caribenhos eram, na média, os mais extensos do continente), poucos proprietários brancos, reduzido número de libertos e de brancos pobres -tal foi o panorama que se impôs nas grandes ilhas ao longo do século 18, especialmente na Jamaica e em São Domingos (o antigo nome do Haiti). Este, por liderar a produção mundial de açúcar e de café, passou a ser conhecida como a "pérola do Caribe".
Tudo em seu lugar
Em 1790, às vésperas de regressar à Europa, o barão de Wimpffen era enfático em sua opinião sobre São Domingos: "Nesta terra, todos estão nos seus devidos lugares". Ledo engano. Meses depois estourava a revolução, sobre a qual muito se tem escrito nas academias francesas e anglo-saxãs. Quanto às suas origens, não é consenso que a enorme desproporção entre o número de escravos e o de brancos tenha estado na raiz dos acontecimentos. Afinal, na Jamaica de 1768 conviviam 170 mil cativos e apenas 18 mil brancos -isto é, os mesmos 10 por 1 observados em São Domingos pouco antes da insurreição que levou Toussaint L'Ouverture ao poder.
O veio mais fecundo tem sido rastrear a singular combinação desse panorama demográfico com a intensa ligação da ilha ao tráfico atlântico de escravos, a existência de um draconiano código legal ("Code Noir"), que promovia a radical exclusão dos negros, e a profunda cisão que a Revolução Francesa promoveu entre os brancos da colônia. Além disso, muito se tem insistido no poderoso papel do vodu, que aparava as arestas existentes entre as inúmeras etnias de africanos, entre os escravos e os libertos e entre os cativos e os milhares de quilombolas enfurnados nas matas, dando certa unidade às aspirações e práticas dos homens negros em geral.
Curiosa ironia: pesquisas recentes têm descoberto ter sido Toussaint, ele próprio, senhor de alguns escravos.
No que tange aos acontecimentos posteriores à proclamação da independência por Jean-Jacques Dessalines, poucos se assustam com o fato de se ter optado ali por uma economia camponesa, inserida apenas em circuitos mercantis ultralocalizados. Mas muito se tem insistido no brutal isolamento internacional imposto à nova nação, comparável apenas ao que atualmente é feito com Cuba. Era o resultado previsível do pavor verdadeiramente continental -em especial no Brasil- de que se repetissem alhures os inusitados acontecimentos do Haiti.
Mais política que história
Quase todos esses tópicos estão presentes em "Os Jacobinos Negros", a primeira tentativa de fôlego de interpretação marxista da revolução haitiana, escrita em 1938 por Cyril Lionel Robert James (1901-1989). Trata-se de obra mais política do que histórica -é principalmente um libelo contra a discriminação racial e em favor da afirmação do que mais tarde se chamou de ideologia da negritude.
Uma observação final: é simplesmente desconcertante que, entre nós, a tradução de um livro desse porte, cuja importância historiográfica reside sobretudo na força da sua narrativa, tenha ocorrido somente agora, 62 anos depois da primeira edição em inglês.
TRECHO
Toussaint era um homem íntegro. O homem em que havia se transformado pela Revolução Francesa exigia que fosse mantida a relação com a França da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da abolição da escravidão, indiscutivelmente. O significado da França revolucionária estava sempre em seus lábios, em suas declarações públicas, em sua correspondência e na intimidade espontânea de suas conversas particulares. Era o mais alto estádio da existência social que ele podia imaginar. Não era apenas a estrutura de sua mente. Ninguém à sua volta, além dele, tinha tanta consciência da necessidade prática de resolver o problema do atraso social e das primitivas condições de vida. Sendo o homem que era, por natureza e pela extensão e pela intensidade das novas experiências, que são privilégio de poucos, aquela era a maneira pela qual enxergava o mundo em que vivia. Sua atitude irreal para com os antigos senhores, na sua pátria e fora dela, provinha não de um humanitarismo ou de uma lealdade abstrata, mas do reconhecimento de que apenas eles tinham o que a sociedade de São Domingos precisava. Ele acreditava que poderia manipulá-los. (...) Se estava convencido de que São Domingos decairia sem as vantagens da conexão francesa, também estava certo de que a escravidão jamais poderia ser restaurada.
Entre essas duas certezas, (...) tornar-se-ia a personificação do vacilo. Foi a fidelidade à Revolução Francesa e a tudo que ela possibilitou, para a humanidade em geral e para o povo de São Domingos em particular, que o tornou no que ele era. Mas isso acabou por arruiná-lo no final. (...) Mas as observações dos fatos e as conclusões exigidas não devem obscurecer ou diminuir o verdadeiro caráter trágico do seu dilema, que é um dos mais extraordinários entre os registrados pela história.
Trecho de "Os Jacobinos Negros", de C.L.R. James
Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira) e "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).
Na Senzala uma Flor: Esperanças e Recordações na Formação da Família Escrava - Brasil Sudeste, Século 19
Robert Slenes
Ed. Nova Fronteira, 300 págs.
Historiadores discutem obra de Robert Slenes sobre família escrava no Brasil
O fogo africano
João José Reis | Douglas Libby
JOÃO JOSÉ REIS
O título deste livro refere-se à imagem usada por um viajante estrangeiro no Brasil, Charles Ribeyrolles, para quem não haveria "uma flor" na senzala -não haveria amor, família, "nem esperanças nem recordações" entre escravos brasileiros. O historiador Robert Slenes, da Universidade Estadual de Campinas, encontrou essa flor. Seu excelente livro combate a opinião, prevalecente entre observadores do passado, e muitos historiadores até recentemente, de que os escravos eram sexualmente promíscuos, não tendo um mínimo de vida familiar normal. Outros pesquisadores vêm publicando sobre o tema, mas por meio dos mais diversos veículos acadêmicos, e agora deste livro, Slenes tornou-se o principal artilheiro nesse campo.
Ele dedica todo o primeiro capítulo a repassar e comentar criticamente a literatura sobre o tema, desde autores que negavam a família escrava (como Florestan Fernandes e Roger Bastide) aos que agora a estudam (como Manolo Florentino, Roberto Góes, Hebe Mattos e Flávio Mota). Nesse capítulo, como nos demais, além de dar conta da historiografia brasileira, ele identifica influências e coincidências entre o que se escrevia aqui e lá fora, nos EUA sobretudo. Sua erudição bibliográfica é mobilizada para iluminar o caso do Brasil mediante a comparação e o uso de boas estratégias de pesquisa desenvolvidas alhures.
Vida familial escrava
Com efeito, grande parte do livro baseia-se num sistemático e inteligente diálogo, sobretudo com historiadores da escravidão no Sudeste brasileiro. À sua principal base empírica, o município de Campinas, em São Paulo, ele agrega dados de outras regiões levantados por outros pesquisadores para discutir, numa perspectiva comparativa, temas como taxas de nupcialidade, endogamia étnica, relação entre tamanho de plantel e viabilidade de casamento e vários outros aspectos da vida familiar escrava, submetidos a sistemático tratamento quantitativo. Conclui que, em Campinas, típica região escravista do Oeste paulista, a família tem enorme importância para entender os escravos.
Não obstante o grande valor da discussão historiográfica do primeiro capítulo e da impressionante análise demográfica do segundo, estão nos dois capítulos restantes os momentos que considero mais surpreendentes e criativos, talvez os mais polêmicos, desse livro. Neles, Slenes discute a família escrava à luz da cultura africana, mas suas conclusões e métodos vão muito além do tema específico. Tinham os escravos projetos próprios no Brasil e "recordações" da África que os inspirasse em sua implementação? O historiador mostra que sim, contra a opinião preconceituosa de viajantes estrangeiros e literatos nacionais da época, em cujas entrelinhas descobre possíveis sentidos culturais e marcas identitárias da experiência escrava.
A partir de indícios aparentemente insignificantes, amiúde buscados na observação de detalhes em gravuras feitas por viajantes, o autor relaciona, por exemplo, padrões de construção em aldeias africanas com os de senzalas brasileiras, reinterpretando radicalmente as razões de certas soluções arquitetônicas. A ausência de janelas, em particular, vista comumente como recurso de controle senhorial contra fugas, ganha exaustiva explicação "africana". Mesmo que fosse interessante para o senhor que as senzalas não tivessem janelas, os próprios escravos tinham interesse de que fosse assim, e assim construíam suas próprias casas quando conquistavam o direito de fazê-lo.
Grupos bantos
A África nesse livro não é, entretanto, uma noção vaga. Slenes localiza com a precisão possível as regiões de onde foi importada a grande maioria dos escravos do Sudeste brasileiro no século 19. Eram africanos de grupos linguísticos bantos -bakongo, mbundu, ovimbundo e outros. As conexões feitas entre um e outro lado do Atlântico obedecem uma direção precisa de pesquisa e reflexão. O método alcança ponto alto no último capítulo, na abordagem feita sobre a importância material e simbólica do fogo sempre aceso no interior de senzalas sem janelas, coisa que intrigava senhores e visitantes das fazendas, cuja compreensão mais densa se tornou agora possível. Slenes sugere que fogo africano e família escrava tinham tudo a ver, e quem ler o livro irá descobrir a complexidade dessa relação. Basta dizer que, do detalhe do fogo, o autor chega à cosmovisão banto. É método indiciário de causar inveja a Carlo Ginzburg, embora a influência teórica mais diretamente reconhecida por Slenes seja E.P. Thompson.
E por falar em Thompson, esse livro tem enorme importância para o estudo da resistência escrava. Slenes argumenta que tradições africanas fundamentaram identidades e solidariedades que marcaram a luta de classes no Sudeste escravista. Não foi luta espetacular, de revoltas e quilombos que fizessem manchete, mas sobretudo daquele tipo miúdo, sutil, cotidiano, familiar. Ao contrário de outros estudos sobre o tema -notadamente o excelente "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira, 1997), de Manolo Florentino e José Roberto Góes-, no de Slenes a família não se constituiu em fator decisivo de pacificação escrava. Concordo com ele, desde que se entenda resistência da maneira ampla acima definida. De qualquer forma, caberia pesquisar sistematicamente se -controlados outros fatores intervenientes- fugas, quilombos e revoltas, formas clássicas de rebeldia, floresceram mais entre escravos com menor chance de constituir família.
Continuidades e mudanças
O estudo da cultura escrava faz parte de um campo de reflexões, bastante familiar a Slenes, fértil sobretudo na pesquisa sobre EUA e Caribe. Esse campo está grosso modo dividido entre os que enfatizam continuidades africanas nas Américas, e os que acentuam mudanças. Slenes escolheu jogar no primeiro time. Assim, entre as muitas e sutis especulações, provas e contraprovas cuidadosamente apresentadas, não são postas em relevo as prováveis mudanças verificadas a partir da interação entre culturas africanas e locais (inclusive "branco-européia"). É como se a casa-grande pouco influísse culturalmente sobre a senzala, ou apenas estabelecesse os limites para sua criação cultural. É de perguntar se, e como, valores senhoriais sobre sexualidade, corte e casamento teriam sido apropriados pelos escravos.
Tem-se a impressão de ter havido pouca troca cultural na experiência escrava no Sudeste do Brasil, exceto aquelas desenvolvidas em torno de uma "gramática cultural" banto básica. Que dizer, a propósito, das trocas e transformações culturais resultantes do encontro entre bantos e outros africanos, que, apesar de minoritários, eram numerosos no Sudeste, sobretudo no período mais estudado por Slenes, a segunda metade do Oitocentos? A África "descoberta" no Sudeste pelos escravos, por meio da família e de outros meios, não era só -embora fosse principalmente- banto.
Mas a abordagem bantocêntrica de Slenes tem um efeito salutar, porque, além de ajudar a corrigir o hábito historiográfico de imaginar o escravo brasileiro sem suas memórias africanas, é um bom antídoto contra um certo nagocentrismo predominante nos estudos afro-brasileiros. Estou certo de que esta será mais uma razão para maior divulgação e receptividade deste livro. Muitos adeptos e estudiosos das tradições banto, por exemplo, encontrarão aqui fogo bom para sua panela cultural. Além disso, essa meticulosa investigação dos sentidos culturais da família escrava é uma lição de método para quem pretenda estudar qualquer outra "tradição" da África que tenha permanecido em terras brasileiras.
Não quero deixar de comentar mais um aspecto admirável desse livro. O texto de Slenes tem estilo e densidade, sem perder em claridade. Ele será lido como uma aventura de imaginação na pesquisa, pois o autor expõe passo a passo suas dúvidas e soluções provisórias, até chegar a uma "tese". A maioria de nós prefere demonstrar a tese, digamos, sem rodeios, e perde a oportunidade de ensinar com quantas dúvidas a história é afinal escrita.
João José Reis é professor de história da Universidade Federal da Bahia e autor de "A Morte É uma Festa" (Companhia das Letras).
João José Reis | Douglas Libby
DOUGLAS LIBBY
Visando à desmoralização das forças norte-americanas, era tática do exército britânico, durante a Guerra de Independência, oferecer a liberdade aos escravos que debandassem até as áreas sob seu controle. Cerca de 1900 "desertores" cativos foram embarcados para a Inglaterra, quando da retirada britânica de Nova York em 1783. E, no melhor estilo anglo-saxão, cada um deles foi cuidadosamente registrado em listas elaboradas por oficiais da Marinha Real, listas estas que sobrevivem até hoje.
Entre eles, encontravam-se quatro negros que haviam sido propriedade de ninguém menos que o general George Washington, então comandante supremo do aparato militar da incipiente República e, mais tarde, seu primeiro presidente. Não é difícil imaginar o alarde propagandístico que a imprensa de hoje faria sobre deserções desse calibre, mas, a bem da verdade, até muito recentemente o incidente havia caído em esquecimento total. O resgate veio na magnífica obra de Herbert Gutman, "The Black Family in Slavery and Freedom - 1750-1925", publicada em 1976.
A família Washington, é claro, figurava entre as mais importantes de toda a América britânica. Segundo a lógica das elites brancas, que se achavam em pleno controle do processo de aculturação de seus escravos africanos e nativos, cativos pertencentes a famílias como a dos Washington com certeza adotariam o mesmo sobrenome.
Não obstante, entre os foragidos de tão ilustre proprietário havia um jovem nativo solteiro, cujo nome completo era Daniel Payne. É provável que Washington nunca tenha tomado conhecimento desse fato, mas, se tivesse, seu desgosto por tal "traição" teria sido igual ou maior que a irritação pela perda dos valiosos bens. Nada mais sabemos sobre Daniel, nem se a escolha do sobrenome fora dele mesmo ou de algum de seus antepassados. O que importa aqui é que na adoção de sobrenomes, como em tantas outras escolhas fundamentais ao longo de suas vidas, na medida do possível, os escravos agiam de maneira autônoma, procurando distanciar-se, mesmo que simbolicamente, dos seus senhores. Igualmente importante é notar que, no mais das vezes, esses senhores, e a sociedade branca em geral, nada sabiam sobre o comportamento íntimo dos escravos.
A referência à obra de Gutman não é nada fortuita, pois ela tem constituído uma das maiores e mais importantes inspirações -tanto teóricas quanto metodológicas- das incansáveis pesquisas realizadas por Robert Slenes ao longo deste último quartel de século, pesquisas estas que ora desembocam na publicação de "Na Senzala, uma Flor". Trata-se, desde já, de um marco na historiografia brasileira e, mais especificamente, na historiografia que lida com nosso passado escravista. Tal avaliação se justifica por três razões básicas.
Em primeiro lugar, com "Na Senzala, uma Flor" caem por terra, e agora de maneira definitiva, velhos mitos produzidos por uma historiografia que enxergava no escravo mera coisa dominada e manipulada pelo senhor e, na senzala, uma promiscuidade animalesca. Para historiadores do passado, cujas conclusões lamentavelmente ainda se perpetuam nos textos didáticos de primeiro e segundo grau, a noção de que escravos pudessem formar famílias estáveis e, com base nelas, construir comunidades próprias, seria considerada risível. Slenes demonstra, com evidências empíricas sólidas, não apenas a existência regular e extensa de famílias escravas ao longo do século 19, como também de uniões conjugais de considerável duração, além de crianças cuja formação se dava na presença de ambos os pais. Ademais, embora o palco das pesquisas seja o sudeste da "plantation", as evidências mais pormenorizadas e, portanto, mais convincentes, são originárias do município de Campinas, famigerado no oitocentos como terra dos mais temidos e cruéis senhores de escravos de todo o Brasil.
No terreno metodológico, a obra de Slenes só pode ser considerada como majestosa. Ao vincular, no tempo e no espaço, informações oriundas de fontes primárias variadas e, de modo geral tidas como desconexas, este pesquisador se revela um verdadeiro mestre do ofício que é a história. De listas nominativas, censos, matrículas de escravos, registros paroquiais, inventários "post mortem", testamentos e processos criminais e cíveis, entre tantas outras fontes, extraíram-se dados que, tratados com paciência e engenhosidade, vão revelando quadros inusitados da vida escrava, em particular, é claro, da vida em família.
Por mais que esses quadros apontem para uma certa autonomia escrava, o autor nunca perde de vista a dura realidade de um cotidiano no qual o paternalismo escravista assegurava ao senhor a palavra final. A missão a que Slenes se propõe é a de dotar o escravo de seu devido papel histórico, na melhor tradição de E.P. Thompson. Não é sua intenção alentar uma suposta brandura da escravidão brasileira.
"Na Senzala, uma Flor" é profundamente marcado pela enorme dedicação do seu autor à literatura historiográfica e antropológica sobre a África Ocidental. E, como ele próprio nos lembra, não é para menos: a vasta maioria do aproximadamente 1,7 milhão de africanos desembarcados no Brasil durante o século 19 foi arrancada do oeste africano. É óbvio que o constante fluxo de cativos para o Brasil tendia a reforçar as influências africanas enraizadas na cultura escrava brasileira.
Na análise qualitativa, o autor aproveita seus conhecimentos da África na identificação de práticas de origem africana que emprestam novos significados à família e à comunidade escravas e, portanto, à autonomia -relativa, é certo- tão duramente construída ao longo de três séculos de escravidão. Salvo uma ou outra honrosa exceção, os estudiosos da história do Brasil têm ignorado a África. Agora sabe-se com precisão a que custo.
Para finalizar, detenho-me um pouco no capítulo dois, no qual o autor empreende sua análise quantitativa/demográfica. De modo geral, pode ser considerada uma análise pautada em um extremo cuidado, seja no levantamento, seja no tratamento dos dados. Os argumentos sobre a existência e importância da família escrava no sudeste oitocentista dificilmente serão refutados. Com efeito, tendo a concordar com Slenes que a maioria de seus achados é válida para as regiões de "plantation" das províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro, bem como da Zona da Mata mineira, mesmo em áreas onde as uniões conjugais raramente se beneficiavam do reconhecimento formal da Igreja. Quer dizer que, em boa parte do Sudeste, eram grandes as possibilidades de que as uniões de casais escravos -formais ou consensuais- fossem estáveis e de duração comparável à dos casamentos entre livres, e de que a maioria das crianças cativas gozasse da presença de pai e mãe pelo menos até os 10 anos de idade.
Devido a razões distintas, que não cabe arrolar aqui, as mesmas conclusões seriam válidas para todo o território mineiro e para a província do Paraná também. Ao mesmo tempo, concordo que, com a intensificação do tráfico interno após 1850, essa situação favorável à família não deve ter prevalecido nem no Nordeste nem no Sul do Brasil. Por outro lado, devo avisar que é difícil emprestar à análise demográfica um texto fluido. Neste caso, o capítulo dois brinda (sic) o leitor com algumas das frases mais densas e contorcidas de toda a obra (é que, entre outros cacoetes, o autor é um adepto, para lá de entusiasmado, do uso de parênteses).
Finalmente, confesso que não me convenceram os argumentos acerca do continuado apego de senhores paulistas à "ideologia do casamento" e dos consequentes altos índices de casamentos legalmente reconhecidos entre a escravaria provincial, mesmo após 1850, quando esses índices caíam vertiginosamente nas fazendas fluminenses. Levanto uma hipótese complementar. Que meus muitos amigos paulistas me desculpem, mas São Paulo, até a chegada do café, mal passava de um posto fronteiriço colonial/provincial. O que, para os escravos, era bom negócio. É que, longe das pressões do tráfico negreiro -leia-se da constante predominância numérica masculina-, as populações escravas caminhavam em direção ao equilíbrio entre os sexos e à reprodução natural, pautados em uniões escravas estáveis. Aliás, sabe-se que essa era a situação em várias das vilas paulistas do final do século 18. Isso sugere que é preciso reconhecer que os próprios escravos de São Paulo também se apegavam, por tradição histórica, ao casamento.
Douglas Libby é professor de história na Universidade Federal de Minas Gerais e autor, com Eduardo França Paiva, de "A Escravidão no Brasil. Relações Sociais, Acordos e Conflitos" (Moderna).
Ed. Nova Fronteira, 300 págs.
Historiadores discutem obra de Robert Slenes sobre família escrava no Brasil
O fogo africano
João José Reis | Douglas Libby
JOÃO JOSÉ REIS
O título deste livro refere-se à imagem usada por um viajante estrangeiro no Brasil, Charles Ribeyrolles, para quem não haveria "uma flor" na senzala -não haveria amor, família, "nem esperanças nem recordações" entre escravos brasileiros. O historiador Robert Slenes, da Universidade Estadual de Campinas, encontrou essa flor. Seu excelente livro combate a opinião, prevalecente entre observadores do passado, e muitos historiadores até recentemente, de que os escravos eram sexualmente promíscuos, não tendo um mínimo de vida familiar normal. Outros pesquisadores vêm publicando sobre o tema, mas por meio dos mais diversos veículos acadêmicos, e agora deste livro, Slenes tornou-se o principal artilheiro nesse campo.
Ele dedica todo o primeiro capítulo a repassar e comentar criticamente a literatura sobre o tema, desde autores que negavam a família escrava (como Florestan Fernandes e Roger Bastide) aos que agora a estudam (como Manolo Florentino, Roberto Góes, Hebe Mattos e Flávio Mota). Nesse capítulo, como nos demais, além de dar conta da historiografia brasileira, ele identifica influências e coincidências entre o que se escrevia aqui e lá fora, nos EUA sobretudo. Sua erudição bibliográfica é mobilizada para iluminar o caso do Brasil mediante a comparação e o uso de boas estratégias de pesquisa desenvolvidas alhures.
Vida familial escrava
Com efeito, grande parte do livro baseia-se num sistemático e inteligente diálogo, sobretudo com historiadores da escravidão no Sudeste brasileiro. À sua principal base empírica, o município de Campinas, em São Paulo, ele agrega dados de outras regiões levantados por outros pesquisadores para discutir, numa perspectiva comparativa, temas como taxas de nupcialidade, endogamia étnica, relação entre tamanho de plantel e viabilidade de casamento e vários outros aspectos da vida familiar escrava, submetidos a sistemático tratamento quantitativo. Conclui que, em Campinas, típica região escravista do Oeste paulista, a família tem enorme importância para entender os escravos.
Não obstante o grande valor da discussão historiográfica do primeiro capítulo e da impressionante análise demográfica do segundo, estão nos dois capítulos restantes os momentos que considero mais surpreendentes e criativos, talvez os mais polêmicos, desse livro. Neles, Slenes discute a família escrava à luz da cultura africana, mas suas conclusões e métodos vão muito além do tema específico. Tinham os escravos projetos próprios no Brasil e "recordações" da África que os inspirasse em sua implementação? O historiador mostra que sim, contra a opinião preconceituosa de viajantes estrangeiros e literatos nacionais da época, em cujas entrelinhas descobre possíveis sentidos culturais e marcas identitárias da experiência escrava.
A partir de indícios aparentemente insignificantes, amiúde buscados na observação de detalhes em gravuras feitas por viajantes, o autor relaciona, por exemplo, padrões de construção em aldeias africanas com os de senzalas brasileiras, reinterpretando radicalmente as razões de certas soluções arquitetônicas. A ausência de janelas, em particular, vista comumente como recurso de controle senhorial contra fugas, ganha exaustiva explicação "africana". Mesmo que fosse interessante para o senhor que as senzalas não tivessem janelas, os próprios escravos tinham interesse de que fosse assim, e assim construíam suas próprias casas quando conquistavam o direito de fazê-lo.
Grupos bantos
A África nesse livro não é, entretanto, uma noção vaga. Slenes localiza com a precisão possível as regiões de onde foi importada a grande maioria dos escravos do Sudeste brasileiro no século 19. Eram africanos de grupos linguísticos bantos -bakongo, mbundu, ovimbundo e outros. As conexões feitas entre um e outro lado do Atlântico obedecem uma direção precisa de pesquisa e reflexão. O método alcança ponto alto no último capítulo, na abordagem feita sobre a importância material e simbólica do fogo sempre aceso no interior de senzalas sem janelas, coisa que intrigava senhores e visitantes das fazendas, cuja compreensão mais densa se tornou agora possível. Slenes sugere que fogo africano e família escrava tinham tudo a ver, e quem ler o livro irá descobrir a complexidade dessa relação. Basta dizer que, do detalhe do fogo, o autor chega à cosmovisão banto. É método indiciário de causar inveja a Carlo Ginzburg, embora a influência teórica mais diretamente reconhecida por Slenes seja E.P. Thompson.
E por falar em Thompson, esse livro tem enorme importância para o estudo da resistência escrava. Slenes argumenta que tradições africanas fundamentaram identidades e solidariedades que marcaram a luta de classes no Sudeste escravista. Não foi luta espetacular, de revoltas e quilombos que fizessem manchete, mas sobretudo daquele tipo miúdo, sutil, cotidiano, familiar. Ao contrário de outros estudos sobre o tema -notadamente o excelente "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira, 1997), de Manolo Florentino e José Roberto Góes-, no de Slenes a família não se constituiu em fator decisivo de pacificação escrava. Concordo com ele, desde que se entenda resistência da maneira ampla acima definida. De qualquer forma, caberia pesquisar sistematicamente se -controlados outros fatores intervenientes- fugas, quilombos e revoltas, formas clássicas de rebeldia, floresceram mais entre escravos com menor chance de constituir família.
Continuidades e mudanças
O estudo da cultura escrava faz parte de um campo de reflexões, bastante familiar a Slenes, fértil sobretudo na pesquisa sobre EUA e Caribe. Esse campo está grosso modo dividido entre os que enfatizam continuidades africanas nas Américas, e os que acentuam mudanças. Slenes escolheu jogar no primeiro time. Assim, entre as muitas e sutis especulações, provas e contraprovas cuidadosamente apresentadas, não são postas em relevo as prováveis mudanças verificadas a partir da interação entre culturas africanas e locais (inclusive "branco-européia"). É como se a casa-grande pouco influísse culturalmente sobre a senzala, ou apenas estabelecesse os limites para sua criação cultural. É de perguntar se, e como, valores senhoriais sobre sexualidade, corte e casamento teriam sido apropriados pelos escravos.
Tem-se a impressão de ter havido pouca troca cultural na experiência escrava no Sudeste do Brasil, exceto aquelas desenvolvidas em torno de uma "gramática cultural" banto básica. Que dizer, a propósito, das trocas e transformações culturais resultantes do encontro entre bantos e outros africanos, que, apesar de minoritários, eram numerosos no Sudeste, sobretudo no período mais estudado por Slenes, a segunda metade do Oitocentos? A África "descoberta" no Sudeste pelos escravos, por meio da família e de outros meios, não era só -embora fosse principalmente- banto.
Mas a abordagem bantocêntrica de Slenes tem um efeito salutar, porque, além de ajudar a corrigir o hábito historiográfico de imaginar o escravo brasileiro sem suas memórias africanas, é um bom antídoto contra um certo nagocentrismo predominante nos estudos afro-brasileiros. Estou certo de que esta será mais uma razão para maior divulgação e receptividade deste livro. Muitos adeptos e estudiosos das tradições banto, por exemplo, encontrarão aqui fogo bom para sua panela cultural. Além disso, essa meticulosa investigação dos sentidos culturais da família escrava é uma lição de método para quem pretenda estudar qualquer outra "tradição" da África que tenha permanecido em terras brasileiras.
Não quero deixar de comentar mais um aspecto admirável desse livro. O texto de Slenes tem estilo e densidade, sem perder em claridade. Ele será lido como uma aventura de imaginação na pesquisa, pois o autor expõe passo a passo suas dúvidas e soluções provisórias, até chegar a uma "tese". A maioria de nós prefere demonstrar a tese, digamos, sem rodeios, e perde a oportunidade de ensinar com quantas dúvidas a história é afinal escrita.
João José Reis é professor de história da Universidade Federal da Bahia e autor de "A Morte É uma Festa" (Companhia das Letras).
João José Reis | Douglas Libby
DOUGLAS LIBBY
Visando à desmoralização das forças norte-americanas, era tática do exército britânico, durante a Guerra de Independência, oferecer a liberdade aos escravos que debandassem até as áreas sob seu controle. Cerca de 1900 "desertores" cativos foram embarcados para a Inglaterra, quando da retirada britânica de Nova York em 1783. E, no melhor estilo anglo-saxão, cada um deles foi cuidadosamente registrado em listas elaboradas por oficiais da Marinha Real, listas estas que sobrevivem até hoje.
Entre eles, encontravam-se quatro negros que haviam sido propriedade de ninguém menos que o general George Washington, então comandante supremo do aparato militar da incipiente República e, mais tarde, seu primeiro presidente. Não é difícil imaginar o alarde propagandístico que a imprensa de hoje faria sobre deserções desse calibre, mas, a bem da verdade, até muito recentemente o incidente havia caído em esquecimento total. O resgate veio na magnífica obra de Herbert Gutman, "The Black Family in Slavery and Freedom - 1750-1925", publicada em 1976.
A família Washington, é claro, figurava entre as mais importantes de toda a América britânica. Segundo a lógica das elites brancas, que se achavam em pleno controle do processo de aculturação de seus escravos africanos e nativos, cativos pertencentes a famílias como a dos Washington com certeza adotariam o mesmo sobrenome.
Não obstante, entre os foragidos de tão ilustre proprietário havia um jovem nativo solteiro, cujo nome completo era Daniel Payne. É provável que Washington nunca tenha tomado conhecimento desse fato, mas, se tivesse, seu desgosto por tal "traição" teria sido igual ou maior que a irritação pela perda dos valiosos bens. Nada mais sabemos sobre Daniel, nem se a escolha do sobrenome fora dele mesmo ou de algum de seus antepassados. O que importa aqui é que na adoção de sobrenomes, como em tantas outras escolhas fundamentais ao longo de suas vidas, na medida do possível, os escravos agiam de maneira autônoma, procurando distanciar-se, mesmo que simbolicamente, dos seus senhores. Igualmente importante é notar que, no mais das vezes, esses senhores, e a sociedade branca em geral, nada sabiam sobre o comportamento íntimo dos escravos.
A referência à obra de Gutman não é nada fortuita, pois ela tem constituído uma das maiores e mais importantes inspirações -tanto teóricas quanto metodológicas- das incansáveis pesquisas realizadas por Robert Slenes ao longo deste último quartel de século, pesquisas estas que ora desembocam na publicação de "Na Senzala, uma Flor". Trata-se, desde já, de um marco na historiografia brasileira e, mais especificamente, na historiografia que lida com nosso passado escravista. Tal avaliação se justifica por três razões básicas.
Em primeiro lugar, com "Na Senzala, uma Flor" caem por terra, e agora de maneira definitiva, velhos mitos produzidos por uma historiografia que enxergava no escravo mera coisa dominada e manipulada pelo senhor e, na senzala, uma promiscuidade animalesca. Para historiadores do passado, cujas conclusões lamentavelmente ainda se perpetuam nos textos didáticos de primeiro e segundo grau, a noção de que escravos pudessem formar famílias estáveis e, com base nelas, construir comunidades próprias, seria considerada risível. Slenes demonstra, com evidências empíricas sólidas, não apenas a existência regular e extensa de famílias escravas ao longo do século 19, como também de uniões conjugais de considerável duração, além de crianças cuja formação se dava na presença de ambos os pais. Ademais, embora o palco das pesquisas seja o sudeste da "plantation", as evidências mais pormenorizadas e, portanto, mais convincentes, são originárias do município de Campinas, famigerado no oitocentos como terra dos mais temidos e cruéis senhores de escravos de todo o Brasil.
No terreno metodológico, a obra de Slenes só pode ser considerada como majestosa. Ao vincular, no tempo e no espaço, informações oriundas de fontes primárias variadas e, de modo geral tidas como desconexas, este pesquisador se revela um verdadeiro mestre do ofício que é a história. De listas nominativas, censos, matrículas de escravos, registros paroquiais, inventários "post mortem", testamentos e processos criminais e cíveis, entre tantas outras fontes, extraíram-se dados que, tratados com paciência e engenhosidade, vão revelando quadros inusitados da vida escrava, em particular, é claro, da vida em família.
Por mais que esses quadros apontem para uma certa autonomia escrava, o autor nunca perde de vista a dura realidade de um cotidiano no qual o paternalismo escravista assegurava ao senhor a palavra final. A missão a que Slenes se propõe é a de dotar o escravo de seu devido papel histórico, na melhor tradição de E.P. Thompson. Não é sua intenção alentar uma suposta brandura da escravidão brasileira.
"Na Senzala, uma Flor" é profundamente marcado pela enorme dedicação do seu autor à literatura historiográfica e antropológica sobre a África Ocidental. E, como ele próprio nos lembra, não é para menos: a vasta maioria do aproximadamente 1,7 milhão de africanos desembarcados no Brasil durante o século 19 foi arrancada do oeste africano. É óbvio que o constante fluxo de cativos para o Brasil tendia a reforçar as influências africanas enraizadas na cultura escrava brasileira.
Na análise qualitativa, o autor aproveita seus conhecimentos da África na identificação de práticas de origem africana que emprestam novos significados à família e à comunidade escravas e, portanto, à autonomia -relativa, é certo- tão duramente construída ao longo de três séculos de escravidão. Salvo uma ou outra honrosa exceção, os estudiosos da história do Brasil têm ignorado a África. Agora sabe-se com precisão a que custo.
Para finalizar, detenho-me um pouco no capítulo dois, no qual o autor empreende sua análise quantitativa/demográfica. De modo geral, pode ser considerada uma análise pautada em um extremo cuidado, seja no levantamento, seja no tratamento dos dados. Os argumentos sobre a existência e importância da família escrava no sudeste oitocentista dificilmente serão refutados. Com efeito, tendo a concordar com Slenes que a maioria de seus achados é válida para as regiões de "plantation" das províncias de São Paulo e do Rio de Janeiro, bem como da Zona da Mata mineira, mesmo em áreas onde as uniões conjugais raramente se beneficiavam do reconhecimento formal da Igreja. Quer dizer que, em boa parte do Sudeste, eram grandes as possibilidades de que as uniões de casais escravos -formais ou consensuais- fossem estáveis e de duração comparável à dos casamentos entre livres, e de que a maioria das crianças cativas gozasse da presença de pai e mãe pelo menos até os 10 anos de idade.
Devido a razões distintas, que não cabe arrolar aqui, as mesmas conclusões seriam válidas para todo o território mineiro e para a província do Paraná também. Ao mesmo tempo, concordo que, com a intensificação do tráfico interno após 1850, essa situação favorável à família não deve ter prevalecido nem no Nordeste nem no Sul do Brasil. Por outro lado, devo avisar que é difícil emprestar à análise demográfica um texto fluido. Neste caso, o capítulo dois brinda (sic) o leitor com algumas das frases mais densas e contorcidas de toda a obra (é que, entre outros cacoetes, o autor é um adepto, para lá de entusiasmado, do uso de parênteses).
Finalmente, confesso que não me convenceram os argumentos acerca do continuado apego de senhores paulistas à "ideologia do casamento" e dos consequentes altos índices de casamentos legalmente reconhecidos entre a escravaria provincial, mesmo após 1850, quando esses índices caíam vertiginosamente nas fazendas fluminenses. Levanto uma hipótese complementar. Que meus muitos amigos paulistas me desculpem, mas São Paulo, até a chegada do café, mal passava de um posto fronteiriço colonial/provincial. O que, para os escravos, era bom negócio. É que, longe das pressões do tráfico negreiro -leia-se da constante predominância numérica masculina-, as populações escravas caminhavam em direção ao equilíbrio entre os sexos e à reprodução natural, pautados em uniões escravas estáveis. Aliás, sabe-se que essa era a situação em várias das vilas paulistas do final do século 18. Isso sugere que é preciso reconhecer que os próprios escravos de São Paulo também se apegavam, por tradição histórica, ao casamento.
Douglas Libby é professor de história na Universidade Federal de Minas Gerais e autor, com Eduardo França Paiva, de "A Escravidão no Brasil. Relações Sociais, Acordos e Conflitos" (Moderna).
"Formação do Brasil Contemporâneo"
"História Econômica do Brasil"
de Caio Prado Jr.
Leia a seguir uma resenha publicada pelo historiador Fernand Braudel em 1948 e ainda inédita no Brasil sobre dois livros de Caio Prado Júnior (1907-1990), obras que se tornaram reflexões clássicas sobre o país: "Formação do Brasil Contemporâneo" e "História Econômica do Brasil". O texto é um dos destaques da revista "Praga", e traz ainda artigos de Celso Furtado, José Luís Fiori e João Adolfo Hansen, entre outros.
Fernand Braudel (1902-1985), que no início da carreira -entre 1935 e 1937- deu aulas na USP, é um dos mais importantes historiadores do século, autor, entre outros, de "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico".
Braudel analisa Caio Prado Jr.
Caio Prado Júnior nos oferece dois excelentes livros sobre o Brasil. Um deles constitui a melhor história econômica de que dispomos sobre seu país; o outro é o início de uma obra que se anuncia -e que esperamos monumental- sobre o Brasil de hoje. Dois livros, dois esboços, dois percursos diferentes, de calibres igualmente distintos, mas no mesmo tom. Cabe indagar: no mesmo tom científico?
Inspirados na "dialética materialista" e com um vigor singular, acentuam os "processos" da história. Poderíamos dizer, as correntes e os fluxos da vida em que o passado não cessa de inflar e de alimentar o instável e efêmero presente. Correto, toda história implica uma filosofia, conforme esclarece nosso autor no vigoroso prefácio de "História Econômica do Brasil". Quanto a isso, não procuraríamos desavenças. Não há paisagem, nem história, sem posto de observação. Isso vale tanto -se não mais- para nossas incertas ciências humanas, quanto para as ciências da natureza. Trata-se, rigorosamente, de considerar a posição do observador.
Perdoem-nos esses alertas, não há razão para desenvolvê-las aqui nos "Annales". Desnecessário afirmar o que há de justo, forte e eficaz na dialética materialista aplicada à história; graças a ela, o manto da nossa disciplina foi iluminado. Isto é uma verdade trivial. Não é preciso lembrar quanto, nos "Annales", temos combatido pró e contra esses esclarecimentos, às vezes úteis e novos, mas também terrivelmente deformadores quando realizados sem a devida atenção.
Em todo caso, se o debate teve que ser reaberto, não vamos dispensar apressadamente dois livros vigilantes, repletos de méritos e cheios de riquezas. Uma crítica, que seria também a defesa dos nossos pontos de vista, revelar-se-ia tremendamente infeliz. Apesar da prévia opção filosófica, Caio Prado é, para bem e para mal, um historiador nato. Trata-se de um observador habituado a checar as fontes, a confrontar a relação entre os fatos, a avançar com prudência e, principalmente, atento à vida múltipla dos homens, que confunde os teóricos, sempre caprichosos, mesmo em relação às causas mais profundas e determinadas...
Nesses livros, que ninguém se deixe enganar pelo tom voluntariamente despojado de paixão exterior, de poesia fácil e pitoresca. Mal-disfarçados, deixam entrever uma violenta paixão pelo imenso país, do qual estudam a infância e adolescência, com aguda inquietação pela verdade, inteligência e honestidade -que ainda é a melhor maneira de amar os homens, onde quer que estejam. Compreender o Brasil, decifrar suas origens, diagnosticar seus males de maneira científica, válida, distante das vias fáceis e incertas do ensaio, das veredas da pura poesia, das instituições... Logo se verá, se não agora (ninguém é profeta em seu país), que tais livros tendem a germinar, tomando assento na linhagem das grandes e belas obras nas quais o Brasil busca descobrir sua verdadeira face, desde Euclides da Cunha até Paulo Prado e Gilberto Freyre. Sinal de novos tempos: nessa explicação nacional, sempre reiniciada, os historiadores substituíram os poetas, filósofos e ensaístas. Deixemos de lamúrias.
Foi para o ativo Fondo de Cultura Económica do México que Caio Prado escreveu -primeiro em espanhol- esta história econômica do Brasil a que nos referimos na edição em português. Ela se apresenta sob a forma de um livro claro, rápido, de 300 e tantas páginas, em que forçosa e deliberadamente os fatos do passado são expostos em grandes linhas. O autor, que não aprecia painéis, narrativas rebuscadas e quadros construídos de cima para baixo, é bastante feliz em seus sucintos resumos, nos quais o importante é destacado com precisão e dito com vigor.
Oito capítulos cronológicos conduzem o leitor do princípio do século 16 aos tempos atuais: "Preliminares (1500-1530)"; "A Ocupação Efetiva (1530-1640)"; "Expansão Colonial (1640-1770)"; "Apogeu da Colônia (1770-1808)"; "A Era do Liberalismo (1808-1850)"; "O Império Escravocrata e a Aurora Burguesa (1850-1889)"; "A República Burguesa (1889-1930)"; "A Crise de um Sistema (1930 até hoje)". Nota-se rapidamente que Caio Prado não conferiu aos capítulos, todos com enfoques excelentes, os supostos títulos sobre o pau-brasil, o açúcar, a pecuária, o ouro, o café, a borracha, o algodão... Esses títulos são reveladores.
A história econômica não é para Caio Prado um campo fechado, mas uma história interligada, mesclada e intimamente vinculada à vida política e à evolução social. Não será aqui, nos "Annales", que protestaremos. Imagino que outro historiador marxista não hesitaria em decompor, em uma parte, a massa viva da história do Brasil, reservando o etéreo em suas formas diversas para a introdução (e seria necessário comentar tais introduções...).
Poder-se-ia afirmar que a novidade reside no estudo do último século, de 1850 aos nossos dias, ou ainda no mais de meio século que vai da revolução de 1889 e da queda do Império de d. Pedro 2º até hoje? Esse penúltimo capítulo do livro se subdivide em cinco tópicos, sucessivamente: o apogeu de um sistema (advento de uma burguesia de negócios, triunfo do capitalismo estrangeiro e consolidação de uma corrente de exportação de produtos primários); uma crise de transição (entendida, principalmente, como a crise financeira que é a consequência crônica do sistema, oscilações no câmbio, quase bancarrota, consolidação do enorme montante da dívida externa); expansão e crise da produção agrícola (um destacado estudo sobre o comércio do café); a industrialização; o imperialismo (esse título, sem epítetos, parece-me muito discutível, mas...).
Todas essas questões mereceriam um exame cuidadoso que não podemos desenvolver aqui. Seria desejável que uma tradução francesa colocasse essas riquezas ao alcance de nossos leitores, professores, especialistas e do público esclarecido da política e dos negócios. Insurjo-me contra qualquer explicação da indústria brasileira que, como indica Caio Prado, não considere suas curiosas origens. Mais do que um nacionalismo econômico, não foi a instável política alfandegária que originou uma indústria artificial, sem perspectiva de conjunto e que ainda se ressente do passado?
Na verdade, o que a análise dessas descrições densas e inovadoras revela é a atenção do autor ao conjunto da paisagem histórica (uma vez que o Brasil menos conhecido é o de ontem e o de hoje, deformado ano após ano pelos desconcertantes e ininterruptos fogos de artifício das inovações econômicas e humanas). Isso o leitor percebe nos demais capítulos do livro, bem como a clareza, a sutileza das análises e explicações. Exemplo: em 1889, há cem anos de distância, a revolução brasileira segue a grande Revolução Francesa. Simples acidente, dirão alguns; apenas um golpe militar, com a participação de alguns civis, afirmarão outros. O povo brasileiro permaneceu inerte, bestializado, na expressão de um dos fundadores da República, "sem consciência alguma do que se passava". Simples acidente.
Entretanto, com ele tudo muda na história do imenso país. Completa-se uma evolução lentamente preparada. Sob o impacto das novas águas, rompem-se todos os diques (incontáveis) do conservantismo imperial. Assim, o militar é introduzido na cena política, por anos a fio. Melhor e mais característico da nova época são os homens de negócios, alçados pela República a uma posição dominante, cheios de importância. O Império, entendido aqui não apenas o regime político, mas a sociedade imperial, a atmosfera da vida brasileira, sempre lhes fora contrário. Mauá, esse extraordinário corretor de negócios, por quem Henri Hauser tem tanto interesse, foi posto no índex do Império... Outros tempos, outros hábitos: nos primeiros anos da República, até mesmo os áulicos do Império lançaram-se às especulações e empreendimentos. Vê-se com esse exemplo, rapidamente tratado, mas suficientemente esclarecedor, que Caio Prado sabe observar, ponderar suas explicações -e que, embora tão distante de nós, segue a mesma trilha dos "Annales".
Supõem-se que tenha algumas restrições. Elas derivam de divergências no enfoque inicial. Aquilo que um brasileiro -penso em Gilberto Freyre- entrevê como tendência a explicar a história do Brasil de dentro para fora (e é seu direito e mesmo dever), imputando-lhe maior responsabilidade por seu destino do que teve realmente. Cada parte do planeta reflete a história do mundo todo, sofre-a, acomodando-se a ela. Por mais atento que Caio Prado esteja à vida desse vasto conjunto, à intervenção dos grandes trustes bancários, por exemplo, limita-se muitas vezes ao horizonte brasileiro. Esse, de tão amplo, torna-se uma prisão para o historiador. Por que Caio Prado não dá maior atenção à história do Atlântico Sul? Para o Brasil, o oceano não é o instrumento de sua ligação com o mundo? Acredito, como ele, que a uma economia brasileira, feita pelo homem brasileiro, se opõe dramaticamente uma economia imposta de fora, inumana, ligada ao "imperialismo" mundial. Essa distinção ilumina uma série de pontos e fatos notáveis. Afinal, o Brasil não está condenado a abrir-se para o mundo, como todas as partes do globo?
A organização do livro merece algumas ressalvas. Tendo seguido um caminho cronológico, Caio Prado não foi levado a acentuar antes a mudança, em detrimento daquilo que persiste? Assim, para falar como Gaston Roupnel, mais do que uma história estrutural, nos é oferecida uma história conjuntural.
E ainda mais: por inclinação, e também por hábito, Caio Prado, salvo engano, crê antes na história, nas realidades vivas da relação das coisas entre si, do que nas coisas mesmas. Procura, por instinto, os cruzamentos e as fronteiras, a maneira como a história econômica reencontra a política e a vida social, mesmo que comprometa o desenvolvimento claro da argumentação. Também esteve pouco atento ao problema dos preços, abordado obliquamente, sem ocupar-se devidamente com as crises cíclicas e intercíclicas, sempre presentes na matéria econômica e humana do Brasil. Nesses domínios, o grande livro de C. E. Labrousse, intelectualmente tão revolucionário, não teve tempo de despertar curiosidades e reações do outro lado do Atlântico.
Haveria muito a dizer sobre esta magnífica análise do Brasil contemporâneo, da qual Caio Prado nos deu o primeiro volume. Considero o livro mais rico e aberto do que o estudo de história econômica. Mas o que Caio Prado nos oferece é apenas uma introdução; um balanço do Brasil colonial, do qual o país é o filho legítimo, um e outro, diz, não emancipados. É em nome dessa herança viva, mesmo quando transformada, que este primeiro volume, dedicado à atualidade, inicia um balanço amplo, minucioso e inteligente dos três primeiros séculos europeus do Brasil.
Voltam-se as costas para a atualidade, mas para melhor apreendê-la. A matéria viva do Brasil atual é uma sucessão de transformações. Contudo ainda não encontrou os marcos nos quais se amalgamar de forma minimamente durável: "Sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até nos admira de aí achar e que não é senão aquele passado colonial". Daí a necessidade de estabelecer construtivamente um marco, no início do século 19, mas não apenas para oferecer um quadro da história. O autor, repito, não aprecia essas histórias imóveis, dissociadas do tempo, cronologias superficiais e, portanto, inconsistentes e irreais. Para ele a história é movimento, agitação, hidrografia viva. O início do século 19, em que tudo se precipita, não é apenas a topografia das partes visíveis. É também o manancial de onde partem os veios d'água e os rios, toda essa ebulição da vida fustigada pelo tempo.
Três partes amplamente concebidas: o povoamento, a vida material, a vida social. Esses títulos revelam apenas parte do dinamismo dos estudos. Podemos afirmar seu rico conteúdo ou escolher alguns filões, algumas páginas de testemunho. Um livro como este se lê com paixão, explora-se como uma mina de fatos e de idéias. Difícil resumi-lo. Posso afirmar que o considero muito breve, apesar de sua amplitude? Apreciaria um estudo que atentasse mais para as ligações entre o homem e o meio brasileiro e que, geógrafo de formação e vocação, Caio Prado poderia e deveria escrever. Eis um grande tema, o das relações entre o homem e a terra brasileira. E, sempre na minha opinião, talvez ainda falte a esta brilhante análise um estudo sistemático da civilização, conduzido segundo as idéias inovadoras de Lucien Febvre e Marcel Mauss, para além das habituais e estéreis rotinas...
Tradução de Paulo Henrique Martinez e Bernardo Ricuper
de Caio Prado Jr.
Leia a seguir uma resenha publicada pelo historiador Fernand Braudel em 1948 e ainda inédita no Brasil sobre dois livros de Caio Prado Júnior (1907-1990), obras que se tornaram reflexões clássicas sobre o país: "Formação do Brasil Contemporâneo" e "História Econômica do Brasil". O texto é um dos destaques da revista "Praga", e traz ainda artigos de Celso Furtado, José Luís Fiori e João Adolfo Hansen, entre outros.
Fernand Braudel (1902-1985), que no início da carreira -entre 1935 e 1937- deu aulas na USP, é um dos mais importantes historiadores do século, autor, entre outros, de "O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico".
Braudel analisa Caio Prado Jr.
Caio Prado Júnior nos oferece dois excelentes livros sobre o Brasil. Um deles constitui a melhor história econômica de que dispomos sobre seu país; o outro é o início de uma obra que se anuncia -e que esperamos monumental- sobre o Brasil de hoje. Dois livros, dois esboços, dois percursos diferentes, de calibres igualmente distintos, mas no mesmo tom. Cabe indagar: no mesmo tom científico?
Inspirados na "dialética materialista" e com um vigor singular, acentuam os "processos" da história. Poderíamos dizer, as correntes e os fluxos da vida em que o passado não cessa de inflar e de alimentar o instável e efêmero presente. Correto, toda história implica uma filosofia, conforme esclarece nosso autor no vigoroso prefácio de "História Econômica do Brasil". Quanto a isso, não procuraríamos desavenças. Não há paisagem, nem história, sem posto de observação. Isso vale tanto -se não mais- para nossas incertas ciências humanas, quanto para as ciências da natureza. Trata-se, rigorosamente, de considerar a posição do observador.
Perdoem-nos esses alertas, não há razão para desenvolvê-las aqui nos "Annales". Desnecessário afirmar o que há de justo, forte e eficaz na dialética materialista aplicada à história; graças a ela, o manto da nossa disciplina foi iluminado. Isto é uma verdade trivial. Não é preciso lembrar quanto, nos "Annales", temos combatido pró e contra esses esclarecimentos, às vezes úteis e novos, mas também terrivelmente deformadores quando realizados sem a devida atenção.
Em todo caso, se o debate teve que ser reaberto, não vamos dispensar apressadamente dois livros vigilantes, repletos de méritos e cheios de riquezas. Uma crítica, que seria também a defesa dos nossos pontos de vista, revelar-se-ia tremendamente infeliz. Apesar da prévia opção filosófica, Caio Prado é, para bem e para mal, um historiador nato. Trata-se de um observador habituado a checar as fontes, a confrontar a relação entre os fatos, a avançar com prudência e, principalmente, atento à vida múltipla dos homens, que confunde os teóricos, sempre caprichosos, mesmo em relação às causas mais profundas e determinadas...
Nesses livros, que ninguém se deixe enganar pelo tom voluntariamente despojado de paixão exterior, de poesia fácil e pitoresca. Mal-disfarçados, deixam entrever uma violenta paixão pelo imenso país, do qual estudam a infância e adolescência, com aguda inquietação pela verdade, inteligência e honestidade -que ainda é a melhor maneira de amar os homens, onde quer que estejam. Compreender o Brasil, decifrar suas origens, diagnosticar seus males de maneira científica, válida, distante das vias fáceis e incertas do ensaio, das veredas da pura poesia, das instituições... Logo se verá, se não agora (ninguém é profeta em seu país), que tais livros tendem a germinar, tomando assento na linhagem das grandes e belas obras nas quais o Brasil busca descobrir sua verdadeira face, desde Euclides da Cunha até Paulo Prado e Gilberto Freyre. Sinal de novos tempos: nessa explicação nacional, sempre reiniciada, os historiadores substituíram os poetas, filósofos e ensaístas. Deixemos de lamúrias.
Foi para o ativo Fondo de Cultura Económica do México que Caio Prado escreveu -primeiro em espanhol- esta história econômica do Brasil a que nos referimos na edição em português. Ela se apresenta sob a forma de um livro claro, rápido, de 300 e tantas páginas, em que forçosa e deliberadamente os fatos do passado são expostos em grandes linhas. O autor, que não aprecia painéis, narrativas rebuscadas e quadros construídos de cima para baixo, é bastante feliz em seus sucintos resumos, nos quais o importante é destacado com precisão e dito com vigor.
Oito capítulos cronológicos conduzem o leitor do princípio do século 16 aos tempos atuais: "Preliminares (1500-1530)"; "A Ocupação Efetiva (1530-1640)"; "Expansão Colonial (1640-1770)"; "Apogeu da Colônia (1770-1808)"; "A Era do Liberalismo (1808-1850)"; "O Império Escravocrata e a Aurora Burguesa (1850-1889)"; "A República Burguesa (1889-1930)"; "A Crise de um Sistema (1930 até hoje)". Nota-se rapidamente que Caio Prado não conferiu aos capítulos, todos com enfoques excelentes, os supostos títulos sobre o pau-brasil, o açúcar, a pecuária, o ouro, o café, a borracha, o algodão... Esses títulos são reveladores.
A história econômica não é para Caio Prado um campo fechado, mas uma história interligada, mesclada e intimamente vinculada à vida política e à evolução social. Não será aqui, nos "Annales", que protestaremos. Imagino que outro historiador marxista não hesitaria em decompor, em uma parte, a massa viva da história do Brasil, reservando o etéreo em suas formas diversas para a introdução (e seria necessário comentar tais introduções...).
Poder-se-ia afirmar que a novidade reside no estudo do último século, de 1850 aos nossos dias, ou ainda no mais de meio século que vai da revolução de 1889 e da queda do Império de d. Pedro 2º até hoje? Esse penúltimo capítulo do livro se subdivide em cinco tópicos, sucessivamente: o apogeu de um sistema (advento de uma burguesia de negócios, triunfo do capitalismo estrangeiro e consolidação de uma corrente de exportação de produtos primários); uma crise de transição (entendida, principalmente, como a crise financeira que é a consequência crônica do sistema, oscilações no câmbio, quase bancarrota, consolidação do enorme montante da dívida externa); expansão e crise da produção agrícola (um destacado estudo sobre o comércio do café); a industrialização; o imperialismo (esse título, sem epítetos, parece-me muito discutível, mas...).
Todas essas questões mereceriam um exame cuidadoso que não podemos desenvolver aqui. Seria desejável que uma tradução francesa colocasse essas riquezas ao alcance de nossos leitores, professores, especialistas e do público esclarecido da política e dos negócios. Insurjo-me contra qualquer explicação da indústria brasileira que, como indica Caio Prado, não considere suas curiosas origens. Mais do que um nacionalismo econômico, não foi a instável política alfandegária que originou uma indústria artificial, sem perspectiva de conjunto e que ainda se ressente do passado?
Na verdade, o que a análise dessas descrições densas e inovadoras revela é a atenção do autor ao conjunto da paisagem histórica (uma vez que o Brasil menos conhecido é o de ontem e o de hoje, deformado ano após ano pelos desconcertantes e ininterruptos fogos de artifício das inovações econômicas e humanas). Isso o leitor percebe nos demais capítulos do livro, bem como a clareza, a sutileza das análises e explicações. Exemplo: em 1889, há cem anos de distância, a revolução brasileira segue a grande Revolução Francesa. Simples acidente, dirão alguns; apenas um golpe militar, com a participação de alguns civis, afirmarão outros. O povo brasileiro permaneceu inerte, bestializado, na expressão de um dos fundadores da República, "sem consciência alguma do que se passava". Simples acidente.
Entretanto, com ele tudo muda na história do imenso país. Completa-se uma evolução lentamente preparada. Sob o impacto das novas águas, rompem-se todos os diques (incontáveis) do conservantismo imperial. Assim, o militar é introduzido na cena política, por anos a fio. Melhor e mais característico da nova época são os homens de negócios, alçados pela República a uma posição dominante, cheios de importância. O Império, entendido aqui não apenas o regime político, mas a sociedade imperial, a atmosfera da vida brasileira, sempre lhes fora contrário. Mauá, esse extraordinário corretor de negócios, por quem Henri Hauser tem tanto interesse, foi posto no índex do Império... Outros tempos, outros hábitos: nos primeiros anos da República, até mesmo os áulicos do Império lançaram-se às especulações e empreendimentos. Vê-se com esse exemplo, rapidamente tratado, mas suficientemente esclarecedor, que Caio Prado sabe observar, ponderar suas explicações -e que, embora tão distante de nós, segue a mesma trilha dos "Annales".
Supõem-se que tenha algumas restrições. Elas derivam de divergências no enfoque inicial. Aquilo que um brasileiro -penso em Gilberto Freyre- entrevê como tendência a explicar a história do Brasil de dentro para fora (e é seu direito e mesmo dever), imputando-lhe maior responsabilidade por seu destino do que teve realmente. Cada parte do planeta reflete a história do mundo todo, sofre-a, acomodando-se a ela. Por mais atento que Caio Prado esteja à vida desse vasto conjunto, à intervenção dos grandes trustes bancários, por exemplo, limita-se muitas vezes ao horizonte brasileiro. Esse, de tão amplo, torna-se uma prisão para o historiador. Por que Caio Prado não dá maior atenção à história do Atlântico Sul? Para o Brasil, o oceano não é o instrumento de sua ligação com o mundo? Acredito, como ele, que a uma economia brasileira, feita pelo homem brasileiro, se opõe dramaticamente uma economia imposta de fora, inumana, ligada ao "imperialismo" mundial. Essa distinção ilumina uma série de pontos e fatos notáveis. Afinal, o Brasil não está condenado a abrir-se para o mundo, como todas as partes do globo?
A organização do livro merece algumas ressalvas. Tendo seguido um caminho cronológico, Caio Prado não foi levado a acentuar antes a mudança, em detrimento daquilo que persiste? Assim, para falar como Gaston Roupnel, mais do que uma história estrutural, nos é oferecida uma história conjuntural.
E ainda mais: por inclinação, e também por hábito, Caio Prado, salvo engano, crê antes na história, nas realidades vivas da relação das coisas entre si, do que nas coisas mesmas. Procura, por instinto, os cruzamentos e as fronteiras, a maneira como a história econômica reencontra a política e a vida social, mesmo que comprometa o desenvolvimento claro da argumentação. Também esteve pouco atento ao problema dos preços, abordado obliquamente, sem ocupar-se devidamente com as crises cíclicas e intercíclicas, sempre presentes na matéria econômica e humana do Brasil. Nesses domínios, o grande livro de C. E. Labrousse, intelectualmente tão revolucionário, não teve tempo de despertar curiosidades e reações do outro lado do Atlântico.
Haveria muito a dizer sobre esta magnífica análise do Brasil contemporâneo, da qual Caio Prado nos deu o primeiro volume. Considero o livro mais rico e aberto do que o estudo de história econômica. Mas o que Caio Prado nos oferece é apenas uma introdução; um balanço do Brasil colonial, do qual o país é o filho legítimo, um e outro, diz, não emancipados. É em nome dessa herança viva, mesmo quando transformada, que este primeiro volume, dedicado à atualidade, inicia um balanço amplo, minucioso e inteligente dos três primeiros séculos europeus do Brasil.
Voltam-se as costas para a atualidade, mas para melhor apreendê-la. A matéria viva do Brasil atual é uma sucessão de transformações. Contudo ainda não encontrou os marcos nos quais se amalgamar de forma minimamente durável: "Sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até nos admira de aí achar e que não é senão aquele passado colonial". Daí a necessidade de estabelecer construtivamente um marco, no início do século 19, mas não apenas para oferecer um quadro da história. O autor, repito, não aprecia essas histórias imóveis, dissociadas do tempo, cronologias superficiais e, portanto, inconsistentes e irreais. Para ele a história é movimento, agitação, hidrografia viva. O início do século 19, em que tudo se precipita, não é apenas a topografia das partes visíveis. É também o manancial de onde partem os veios d'água e os rios, toda essa ebulição da vida fustigada pelo tempo.
Três partes amplamente concebidas: o povoamento, a vida material, a vida social. Esses títulos revelam apenas parte do dinamismo dos estudos. Podemos afirmar seu rico conteúdo ou escolher alguns filões, algumas páginas de testemunho. Um livro como este se lê com paixão, explora-se como uma mina de fatos e de idéias. Difícil resumi-lo. Posso afirmar que o considero muito breve, apesar de sua amplitude? Apreciaria um estudo que atentasse mais para as ligações entre o homem e o meio brasileiro e que, geógrafo de formação e vocação, Caio Prado poderia e deveria escrever. Eis um grande tema, o das relações entre o homem e a terra brasileira. E, sempre na minha opinião, talvez ainda falte a esta brilhante análise um estudo sistemático da civilização, conduzido segundo as idéias inovadoras de Lucien Febvre e Marcel Mauss, para além das habituais e estéreis rotinas...
Tradução de Paulo Henrique Martinez e Bernardo Ricuper
CILADAS DA DIFERENÇA
CILADAS DA DIFERENÇA
de Antônio Flávio Pierucci.
Editora 34. 22 págs.
EM DEFESA DA HISTÓRIA - MARXISMO E PÓS-MODERNISMO
Org. de Ellen Meiksins Wood e John Bellamy Foster.
Trad. Rui Jungmann.
Jorge Zahar. 218 págs.
resenha
Elogio da Igualdade
Marcelo Coelho
O ser humano não existe: existem ingleses, chineses, americanos.
O americano não existe: existem mulheres americanas, negros americanos, gays americanos. A mulher americana não existe: existem mulheres americanas negras, mulheres americanas gays. A mulher americana negra não existe: existem mulheres americanas negras de classe média, mulheres americanas negras operárias...
Isto não é tudo. As classes sociais também não existem. Há grupos que se redefinem a cada momento, a cada circunstância: motoristas de táxi se dissolvem em corintianos ou palmeirenses, que se dissolvem em adolescentes ou velhos, que se constroem enquanto moradores do Bixiga ou da Lapa.
A Lapa não existe: é uma construção imaginária, uma identidade geográfica criada segundo juízos de valor, experiências subjetivas, jogos de linguagem sedimentados historicamente.
Só que a história não existe tampouco: existem ficções, narrativas que podemos organizar conforme uma estrutura de começo, meio e fim, mas que sempre irão trair a arbitrariedade básica com a qual cada sujeito compõe os dados da realidade. Lembre-se também que o sujeito não existe: é um campo onde se entrecruzam percepções, desejos, linguagens. De resto, a realidade não existe tampouco.
Bobagens como as escritas acima correm o risco, atualmente, de passar como puro senso comum. Com maior ou menor intensidade, volta e meia topamos com raciocínios desse tipo, que correspondem a uma espécie de vulgata pós-moderna. É um grande alívio, nesse quadro de relativismo exacerbado, ler livros como "Ciladas da Diferença" ou "Em Defesa da História". No primeiro, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci desmonta, com clareza e bom humor, os paradoxos a que leva o culto contemporâneo à "identidade" (social, racial, cultural, sexual etc.). A crítica ao "ser humano abstrato", hoje tão disseminada entre a esquerda pós-moderna e os teóricos mais radicais dos movimentos negro e feminista nos Estados Unidos, passa hoje em dia por ser coisa avançada. Nota Pierucci, entretanto, que suas raízes podem ser encontradas no extremo oposto do espectro político.
No século passado, teóricos ultraconservadores como Edmund Burke e Joseph de Maistre, em plena luta contra a idéia de direitos humanos universais, aferravam-se à constatação empírica das "diferenças". De Joseph de Maistre, Pierucci cita uma frase tirada das "Considerações sobre a França": "O homem (universal) não existe. Em minha vida eu vi franceses, italianos, russos etc. (...) Quanto ao homem, contudo, declaro que nunca o encontrei". Mais de cem anos depois, o "elogio da diferença" se torna um tema da "nova esquerda", que, contudo, não pode deixar de lado o tema clássico da igualdade. Pierucci ironiza: "Como se vê, tudo parece muito simples, muito claro: "Os seres humanos são diferentes, mas iguais". Neste jogo de linguagem, tudo se passa inocentemente como se não fosse também um jogo de palavras". É como se a luta contra as várias discriminações, a luta por direitos iguais, estivesse imbricada com outra luta, na qual se procura afirmar a identidade, o valor, a originalidade de um grupo. O que, em si, não encerra nenhuma contradição.
Mas, diz Pierucci, quando o movimento negro, por exemplo, vem afirmar que "negro é diferente", isto será repetir algo que os racistas sempre disseram: "Legitima que a diferença seja enfocada e as distâncias, alargadas... essa atmosfera pós-moderna que muitos de nós hoje respiramos nos ambientes de esquerda, essa onda de celebração neobarroca das diferenças, de apego às singularidades culturais (...), tudo isso assusta muito pouco as cabeças de direita...". O que provoca ojeriza na direita é "ainda hoje, 200 anos depois, o discurso dos direitos humanos, o discurso revolucionário da igualdade". No fundo, o problema dessa e outras "ciladas" talvez seja redutível a um mal-entendido linguístico: só posso defender quem é "diferente" em nome da igualdade; mas a defesa do "diferente" passa a se chamar, num modismo pós-moderno, defesa da "Diferença", com letras maiúsculas... e aí, evidentemente, a igualdade fica falando sozinha.
Com ensaios que tratam desde a mentalidade do eleitor de direita na cidade de São Paulo até as mudanças no feminismo americano, "Ciladas da Diferença" mantém uma admirável unidade de argumentação, que se aproxima bastante da de alguns textos reunidos no livro "Em Defesa da História". O escritor Kenan Malik, por exemplo, em "O Espelho da Raça: O Pós-modernismo e a Louvação da Diferença", nota que "a crítica pós-moderna ao universalismo, longe de formular uma crítica à teoria racial, apropria-se, na verdade, de muitos de seus temas e reproduz os próprios pressupostos sobre os quais, historicamente, assentou-se o racismo". Mas este é apenas um dos temas do volume, que surge como uma impressionante máquina teórica contra os vários cacoetes da teoria pós-moderna. A introdução do volume, escrita por Ellen Meiksins Wood -editora da publicação inglesa de esquerda "The Monthly Review"- aponta de forma demolidora a falta de novidade de temas como "o fim da história", "a fragmentação do sujeito" ou o antiuniversalismo pós-moderno.
A ironia de tudo, diz a autora, é que se insiste na fragmentação e no particularismo num momento em que, como nunca, o capitalismo se tornou uma realidade totalizante num grau sem precedentes. Marxista do começo ao fim, com grande vigor crítico e variedade de enfoques - e, sobretudo, sem nenhum ranço "pré-queda do Muro de Berlim"-, o livro traz ensaios de teóricos conhecidos no Brasil, como Terry Eagleton ("De Onde Vêm os Pós-modernistas?") e Fredric Jameson ("Cinco Teses Sobre o Marxismo Realmente Existente"), nenhum dos dois, a meu ver, no melhor de sua forma. É graças às contribuições de Aijaz Ahmad (sobre cultura nos países "pós-coloniais"), de Bryan Palmer (sobre a pertinência do conceito de classes sociais), de Meera Nanda (contra a "desconstrução" do conhecimento científico) e de Carol Stabile (sobre feminismo) que este volume se faz indispensável. Pelo menos para quem esteja farto do oba-oba pós-moderno.
de Antônio Flávio Pierucci.
Editora 34. 22 págs.
EM DEFESA DA HISTÓRIA - MARXISMO E PÓS-MODERNISMO
Org. de Ellen Meiksins Wood e John Bellamy Foster.
Trad. Rui Jungmann.
Jorge Zahar. 218 págs.
resenha
Elogio da Igualdade
Marcelo Coelho
O ser humano não existe: existem ingleses, chineses, americanos.
O americano não existe: existem mulheres americanas, negros americanos, gays americanos. A mulher americana não existe: existem mulheres americanas negras, mulheres americanas gays. A mulher americana negra não existe: existem mulheres americanas negras de classe média, mulheres americanas negras operárias...
Isto não é tudo. As classes sociais também não existem. Há grupos que se redefinem a cada momento, a cada circunstância: motoristas de táxi se dissolvem em corintianos ou palmeirenses, que se dissolvem em adolescentes ou velhos, que se constroem enquanto moradores do Bixiga ou da Lapa.
A Lapa não existe: é uma construção imaginária, uma identidade geográfica criada segundo juízos de valor, experiências subjetivas, jogos de linguagem sedimentados historicamente.
Só que a história não existe tampouco: existem ficções, narrativas que podemos organizar conforme uma estrutura de começo, meio e fim, mas que sempre irão trair a arbitrariedade básica com a qual cada sujeito compõe os dados da realidade. Lembre-se também que o sujeito não existe: é um campo onde se entrecruzam percepções, desejos, linguagens. De resto, a realidade não existe tampouco.
Bobagens como as escritas acima correm o risco, atualmente, de passar como puro senso comum. Com maior ou menor intensidade, volta e meia topamos com raciocínios desse tipo, que correspondem a uma espécie de vulgata pós-moderna. É um grande alívio, nesse quadro de relativismo exacerbado, ler livros como "Ciladas da Diferença" ou "Em Defesa da História". No primeiro, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci desmonta, com clareza e bom humor, os paradoxos a que leva o culto contemporâneo à "identidade" (social, racial, cultural, sexual etc.). A crítica ao "ser humano abstrato", hoje tão disseminada entre a esquerda pós-moderna e os teóricos mais radicais dos movimentos negro e feminista nos Estados Unidos, passa hoje em dia por ser coisa avançada. Nota Pierucci, entretanto, que suas raízes podem ser encontradas no extremo oposto do espectro político.
No século passado, teóricos ultraconservadores como Edmund Burke e Joseph de Maistre, em plena luta contra a idéia de direitos humanos universais, aferravam-se à constatação empírica das "diferenças". De Joseph de Maistre, Pierucci cita uma frase tirada das "Considerações sobre a França": "O homem (universal) não existe. Em minha vida eu vi franceses, italianos, russos etc. (...) Quanto ao homem, contudo, declaro que nunca o encontrei". Mais de cem anos depois, o "elogio da diferença" se torna um tema da "nova esquerda", que, contudo, não pode deixar de lado o tema clássico da igualdade. Pierucci ironiza: "Como se vê, tudo parece muito simples, muito claro: "Os seres humanos são diferentes, mas iguais". Neste jogo de linguagem, tudo se passa inocentemente como se não fosse também um jogo de palavras". É como se a luta contra as várias discriminações, a luta por direitos iguais, estivesse imbricada com outra luta, na qual se procura afirmar a identidade, o valor, a originalidade de um grupo. O que, em si, não encerra nenhuma contradição.
Mas, diz Pierucci, quando o movimento negro, por exemplo, vem afirmar que "negro é diferente", isto será repetir algo que os racistas sempre disseram: "Legitima que a diferença seja enfocada e as distâncias, alargadas... essa atmosfera pós-moderna que muitos de nós hoje respiramos nos ambientes de esquerda, essa onda de celebração neobarroca das diferenças, de apego às singularidades culturais (...), tudo isso assusta muito pouco as cabeças de direita...". O que provoca ojeriza na direita é "ainda hoje, 200 anos depois, o discurso dos direitos humanos, o discurso revolucionário da igualdade". No fundo, o problema dessa e outras "ciladas" talvez seja redutível a um mal-entendido linguístico: só posso defender quem é "diferente" em nome da igualdade; mas a defesa do "diferente" passa a se chamar, num modismo pós-moderno, defesa da "Diferença", com letras maiúsculas... e aí, evidentemente, a igualdade fica falando sozinha.
Com ensaios que tratam desde a mentalidade do eleitor de direita na cidade de São Paulo até as mudanças no feminismo americano, "Ciladas da Diferença" mantém uma admirável unidade de argumentação, que se aproxima bastante da de alguns textos reunidos no livro "Em Defesa da História". O escritor Kenan Malik, por exemplo, em "O Espelho da Raça: O Pós-modernismo e a Louvação da Diferença", nota que "a crítica pós-moderna ao universalismo, longe de formular uma crítica à teoria racial, apropria-se, na verdade, de muitos de seus temas e reproduz os próprios pressupostos sobre os quais, historicamente, assentou-se o racismo". Mas este é apenas um dos temas do volume, que surge como uma impressionante máquina teórica contra os vários cacoetes da teoria pós-moderna. A introdução do volume, escrita por Ellen Meiksins Wood -editora da publicação inglesa de esquerda "The Monthly Review"- aponta de forma demolidora a falta de novidade de temas como "o fim da história", "a fragmentação do sujeito" ou o antiuniversalismo pós-moderno.
A ironia de tudo, diz a autora, é que se insiste na fragmentação e no particularismo num momento em que, como nunca, o capitalismo se tornou uma realidade totalizante num grau sem precedentes. Marxista do começo ao fim, com grande vigor crítico e variedade de enfoques - e, sobretudo, sem nenhum ranço "pré-queda do Muro de Berlim"-, o livro traz ensaios de teóricos conhecidos no Brasil, como Terry Eagleton ("De Onde Vêm os Pós-modernistas?") e Fredric Jameson ("Cinco Teses Sobre o Marxismo Realmente Existente"), nenhum dos dois, a meu ver, no melhor de sua forma. É graças às contribuições de Aijaz Ahmad (sobre cultura nos países "pós-coloniais"), de Bryan Palmer (sobre a pertinência do conceito de classes sociais), de Meera Nanda (contra a "desconstrução" do conhecimento científico) e de Carol Stabile (sobre feminismo) que este volume se faz indispensável. Pelo menos para quem esteja farto do oba-oba pós-moderno.
O Abolicionismo
Joaquim Nabuco
RESENHA
O caráter orgânico da escravidão
Evaldo Cabral de Mello
"O Abolicionismo", de Joaquim Nabuco, foi a primeira obra a articular uma visão totalizadora da nossa formação histórica, fazendo-o a partir do regime servil. Nessa perspectiva, a escravidão não constituiu um fenômeno a mais, inegavelmente relevante, mas devendo ser levado em conta em igualdade de condições com outros, como a monocultura ou a grande propriedade territorial. Segundo Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação; ela é a instituição que ilumina nosso passado mais poderosamente que qualquer outra. É a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social e a estrutura de classes, o Estado e o poder político, a própria cultura.
"O Abolicionismo" fez assim da escravidão o protagonista por excelência da história brasileira, intuição que tem sido largamente explorada por historiadores, sociólogos e antropólogos, embora raramente reconheçam essa dívida intelectual. Cumpre, porém, fazer uma qualificação importante. "O Abolicionismo" não tem a ambição teórica inerente a um livro de sociologia.
Ele quis ser apenas uma obra de propaganda, redigida em Londres em 1883, quando o autor purgava o ostracismo parlamentar das primeiras eleições diretas da nossa história. Isso significa, por um lado, que a sua visão da sociedade brasileira teve de ser vazada numa prosa de feitio literário ou jornalístico, sem pretensões científicas e sem preocupações terminológicas; por outro, que ele não chegou a aprofundar o sistema de mediações entre o regime servil e os demais fenômenos da nossa formação, não escapando, portanto, a certo reducionismo inevitável.
Nabuco nunca cogitou de lhe dar o desenvolvimento que o livro comportava, capaz de conferir-lhe idoneidade científica aos olhos do establishment sociológico. Daí que "Os Sertões" continue a gozar de um status privilegiado na história da sociologia brasileira, embora se possa dizer do livro de Euclides que o seu escopo está limitado à formação das populações do interior do Nordeste, processo que, ao contrário do escravismo, desempenhou papel ancilar na nossa história.
De "Os Sertões" também se poderia dizer que a sua concepção esteve tão jungida às teorias sociológicas predominantes na Europa em finais do século 19 que envelheceu com elas. Pois as novidades -científicas, doutrinárias ou estéticas- costumam cobrar alto preço àquele que as adota por espírito de sistema. No caso de Euclides, como no de outros igualmente bem equipados teoricamente, o "dernier cri" sociológico os desviou de tomar veredas mais prometedoras, como era a do modelo, implícito em "O Abolicionismo", baseado não no meio físico ou na raça, mas na forma da organização econômica e social. É inegável que Nabuco estava relativamente desinformado das últimas tendências da sociologia européia ou do que se julgava no Brasil serem as últimas tendências da sociologia européia, pois as que inspiraram a concepção de "Os Sertões" tampouco eram novas quando ele foi redigido. Nos derradeiros anos de oitocentos, Buckle ou Taine haviam ficado para trás; Tonnies e Durkheim eram os gurus da nova sociologia que se elaborava na Alemanha e na França. Graças a essa desinformação teórica, Nabuco escapou ao destino de escrever um livro destinado ao envelhecimento rápido, como aconteceu com tanta produção sociológica do tempo da República Velha.
Nas artes, como nas ciências humanas, um certo grau, não diria de arcaísmo, mas de desatualização, pode ser saudável. A influência de Tocqueville Ninguém duvida de que a formação científica de Comte era imensamente superior à de Tocqueville, mas tampouco ninguém põe em questão que a influência do autor da "Democracia na América" tornou-se, ao cabo dos anos, bem mais profunda que a do professor do "Curso de Filosofia Positiva". Na medida em que a formação de Tocqueville era basicamente histórica, tratava-se de limitação evidente em época, como a sua, em que se ambicionava, como Comte, erguer o sistema das ciências que fosse desde a matemática e a física até a sociologia, segundo os mesmos parâmetros epistemológicos.
Contudo o que era passivo do século 19 transformar-se-ia em ativo no 20, do momento em que se passou a proclamar a irredutibilidade do objeto das ciências humanas aos métodos consagrados pelas ciências naturais. Foi assim que a desatualização oitocentista de Tocqueville se metamorfoseou num título de modernidade. Devido à sua natureza de obra de propaganda, o livro de Nabuco tornou-se mais ou menos esquecido, tão logo realizado o objetivo para o qual fora escrito. Grosso modo, pode-se afirmar que, durante a República Velha, nossa produção sociológica esteve obsedada pela questão do Estado nacional e das instituições políticas, de um lado, e, de outro, pelo problema da raça. Só nos anos 30 a escravidão regressou ao centro das preocupações, graças a "Casa Grande & Senzala", que infletiu, contudo, a concepção de Nabuco num sentido que o teria certamente surpreendido, vale dizer, no sentido de uma exaltação da mestiçagem -exaltação, aliás, tão gratuita quanto a condenação que se abatera anteriormente sobre ela.
Nos dias atuais, quando as macroexplicações do passado brasileiro perderam o fôlego, como ocorre com qualquer gênero, inclusive os sociológicos, e em que os epígonos se afanam em glosar interminavelmente nossa identidade nacional, como se ela fosse uma entidade metafísica e não uma criação do século 20, cumpre reler "O Abolicionismo" em conexão com "Um Estadista do Império" e com os discursos da campanha eleitoral de 1884. Nabuco utiliza as palavras "abolicionismo" e "escravidão" numa acepção lata. O conceito de escravidão não se referia apenas à relação entre o senhor e o escravo, mas abrangia também as relações do escravismo com o meio físico, o sistema de propriedade da terra, o comércio, a indústria, a cultura, o regime político e o Estado. Devido a esse caráter orgânico da escravidão é que, a seu ver, o abolicionismo constituía a reforma nacional por excelência. Para explicá-la, ele recorre à história comparada da instituição na Antiguidade clássica e no velho sul dos Estados Unidos.
No Brasil, a escravidão adquirira um traço diferencial, o qual consistira em que, por meio da miscigenação, ela formara a nação. Daí que, do ponto de vista da engenharia política, o problema fosse duplamente complicado para nós, na medida em que a cidadania devia ser dada não apenas ao escravo, mas ao próprio senhor. Essa a razão pela qual, na América portuguesa, a instituição servil agira de modo incomparavelmente mais perverso, tornando impossível identificar um setor da vida nacional que não tivesse sofrido suas repercussões ao longo de três séculos. A escravidão afetara o desenvolvimento de todas as classes, sem o fazer, contudo, numa única direção, pois ora atuou no sentido de impedir-lhes ou retardar-lhes o crescimento, ora no sentido de promovê-lo precoce e artificialmente, o que era ainda mais prejudicial.
RESENHA
O caráter orgânico da escravidão
Evaldo Cabral de Mello
"O Abolicionismo", de Joaquim Nabuco, foi a primeira obra a articular uma visão totalizadora da nossa formação histórica, fazendo-o a partir do regime servil. Nessa perspectiva, a escravidão não constituiu um fenômeno a mais, inegavelmente relevante, mas devendo ser levado em conta em igualdade de condições com outros, como a monocultura ou a grande propriedade territorial. Segundo Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação; ela é a instituição que ilumina nosso passado mais poderosamente que qualquer outra. É a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social e a estrutura de classes, o Estado e o poder político, a própria cultura.
"O Abolicionismo" fez assim da escravidão o protagonista por excelência da história brasileira, intuição que tem sido largamente explorada por historiadores, sociólogos e antropólogos, embora raramente reconheçam essa dívida intelectual. Cumpre, porém, fazer uma qualificação importante. "O Abolicionismo" não tem a ambição teórica inerente a um livro de sociologia.
Ele quis ser apenas uma obra de propaganda, redigida em Londres em 1883, quando o autor purgava o ostracismo parlamentar das primeiras eleições diretas da nossa história. Isso significa, por um lado, que a sua visão da sociedade brasileira teve de ser vazada numa prosa de feitio literário ou jornalístico, sem pretensões científicas e sem preocupações terminológicas; por outro, que ele não chegou a aprofundar o sistema de mediações entre o regime servil e os demais fenômenos da nossa formação, não escapando, portanto, a certo reducionismo inevitável.
Nabuco nunca cogitou de lhe dar o desenvolvimento que o livro comportava, capaz de conferir-lhe idoneidade científica aos olhos do establishment sociológico. Daí que "Os Sertões" continue a gozar de um status privilegiado na história da sociologia brasileira, embora se possa dizer do livro de Euclides que o seu escopo está limitado à formação das populações do interior do Nordeste, processo que, ao contrário do escravismo, desempenhou papel ancilar na nossa história.
De "Os Sertões" também se poderia dizer que a sua concepção esteve tão jungida às teorias sociológicas predominantes na Europa em finais do século 19 que envelheceu com elas. Pois as novidades -científicas, doutrinárias ou estéticas- costumam cobrar alto preço àquele que as adota por espírito de sistema. No caso de Euclides, como no de outros igualmente bem equipados teoricamente, o "dernier cri" sociológico os desviou de tomar veredas mais prometedoras, como era a do modelo, implícito em "O Abolicionismo", baseado não no meio físico ou na raça, mas na forma da organização econômica e social. É inegável que Nabuco estava relativamente desinformado das últimas tendências da sociologia européia ou do que se julgava no Brasil serem as últimas tendências da sociologia européia, pois as que inspiraram a concepção de "Os Sertões" tampouco eram novas quando ele foi redigido. Nos derradeiros anos de oitocentos, Buckle ou Taine haviam ficado para trás; Tonnies e Durkheim eram os gurus da nova sociologia que se elaborava na Alemanha e na França. Graças a essa desinformação teórica, Nabuco escapou ao destino de escrever um livro destinado ao envelhecimento rápido, como aconteceu com tanta produção sociológica do tempo da República Velha.
Nas artes, como nas ciências humanas, um certo grau, não diria de arcaísmo, mas de desatualização, pode ser saudável. A influência de Tocqueville Ninguém duvida de que a formação científica de Comte era imensamente superior à de Tocqueville, mas tampouco ninguém põe em questão que a influência do autor da "Democracia na América" tornou-se, ao cabo dos anos, bem mais profunda que a do professor do "Curso de Filosofia Positiva". Na medida em que a formação de Tocqueville era basicamente histórica, tratava-se de limitação evidente em época, como a sua, em que se ambicionava, como Comte, erguer o sistema das ciências que fosse desde a matemática e a física até a sociologia, segundo os mesmos parâmetros epistemológicos.
Contudo o que era passivo do século 19 transformar-se-ia em ativo no 20, do momento em que se passou a proclamar a irredutibilidade do objeto das ciências humanas aos métodos consagrados pelas ciências naturais. Foi assim que a desatualização oitocentista de Tocqueville se metamorfoseou num título de modernidade. Devido à sua natureza de obra de propaganda, o livro de Nabuco tornou-se mais ou menos esquecido, tão logo realizado o objetivo para o qual fora escrito. Grosso modo, pode-se afirmar que, durante a República Velha, nossa produção sociológica esteve obsedada pela questão do Estado nacional e das instituições políticas, de um lado, e, de outro, pelo problema da raça. Só nos anos 30 a escravidão regressou ao centro das preocupações, graças a "Casa Grande & Senzala", que infletiu, contudo, a concepção de Nabuco num sentido que o teria certamente surpreendido, vale dizer, no sentido de uma exaltação da mestiçagem -exaltação, aliás, tão gratuita quanto a condenação que se abatera anteriormente sobre ela.
Nos dias atuais, quando as macroexplicações do passado brasileiro perderam o fôlego, como ocorre com qualquer gênero, inclusive os sociológicos, e em que os epígonos se afanam em glosar interminavelmente nossa identidade nacional, como se ela fosse uma entidade metafísica e não uma criação do século 20, cumpre reler "O Abolicionismo" em conexão com "Um Estadista do Império" e com os discursos da campanha eleitoral de 1884. Nabuco utiliza as palavras "abolicionismo" e "escravidão" numa acepção lata. O conceito de escravidão não se referia apenas à relação entre o senhor e o escravo, mas abrangia também as relações do escravismo com o meio físico, o sistema de propriedade da terra, o comércio, a indústria, a cultura, o regime político e o Estado. Devido a esse caráter orgânico da escravidão é que, a seu ver, o abolicionismo constituía a reforma nacional por excelência. Para explicá-la, ele recorre à história comparada da instituição na Antiguidade clássica e no velho sul dos Estados Unidos.
No Brasil, a escravidão adquirira um traço diferencial, o qual consistira em que, por meio da miscigenação, ela formara a nação. Daí que, do ponto de vista da engenharia política, o problema fosse duplamente complicado para nós, na medida em que a cidadania devia ser dada não apenas ao escravo, mas ao próprio senhor. Essa a razão pela qual, na América portuguesa, a instituição servil agira de modo incomparavelmente mais perverso, tornando impossível identificar um setor da vida nacional que não tivesse sofrido suas repercussões ao longo de três séculos. A escravidão afetara o desenvolvimento de todas as classes, sem o fazer, contudo, numa única direção, pois ora atuou no sentido de impedir-lhes ou retardar-lhes o crescimento, ora no sentido de promovê-lo precoce e artificialmente, o que era ainda mais prejudicial.
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