2 de fevereiro de 2010

Os Jacobinos Negros

C.L.R. James
Tradução de Afonso Teixeira Filho
Boitempo Editoria, 400 págs.



"Os Jacobinos Negros" narra a rebelião de escravos bem-sucedida que levou à criação do Haiti no século 19
Negritude em potência
Manolo Florentino

Os processos históricos geram inúmeros tratados e, igualmente, uma verdadeira legião de leitores insatisfeitos. "Ainda bem!", diriam os historiadores, zelosos em justificar a existência de seu próprio ofício.
Pois a verdade é que, longe de se constituir em prova da incapacidade profissional dos tratadistas ou da incúria de seus leitores, reescrever a história é um ato de ordem cultural -o que, de quebra, a torna muito próxima do mito.
Não surpreende que o trabalho do historiador se assemelhe mais à insana labuta de Sísifo do que ao utilitarismo de Hércules, por exemplo. Mas há temas inesgotáveis simplesmente por serem únicos, isto é, por não ensejarem qualquer paralelo. O processo desencadeado a partir da revolta de 1791, que culminou no surgimento do Estado soberano do Haiti (1804), é um deles -pela inusitada condição de única insurreição escrava vitoriosa desde a Antiguidade greco-romana até o fim dos tempos modernos.
Conta-se que a efetiva integração das Antilhas ao Atlântico escravista teve início nas primeiras décadas do século 17, quando os europeus passaram a ocupar Barbados, Guadalupe e Martinica. O padrão logo se estendeu para todas as ilhas menores do Caribe: a instalação mais de homens do que de mulheres, provenientes sobretudo da Inglaterra e da França, financiados por grandes companhias monopolistas que, em troca, se apropriavam dos frutos de seu trabalho por períodos de até sete anos consecutivos. Ao lado de uns poucos escravos, esses "servos brancos" constituíam o essencial da mão-de-obra empregada em propriedades não tão grandes assim, dedicadas especialmente à produção de tabaco, mas também de anil.
Tudo mudou com a rápida disseminação do cultivo da cana-de-açúcar. Em ilhas como Barbados, por exemplo, a concentração dos recursos foi tão violenta que, em pouco menos de 50 anos, o tamanho médio das fazendas multiplicou-se por dez, o número de proprietários brancos diminuiu em 90% e o de negros escravizados cresceu mais de seis vezes. Grandes propriedades, as maiores das Américas, detentoras de enormes quantidades de cativos (os plantéis caribenhos eram, na média, os mais extensos do continente), poucos proprietários brancos, reduzido número de libertos e de brancos pobres -tal foi o panorama que se impôs nas grandes ilhas ao longo do século 18, especialmente na Jamaica e em São Domingos (o antigo nome do Haiti). Este, por liderar a produção mundial de açúcar e de café, passou a ser conhecida como a "pérola do Caribe".

Tudo em seu lugar
Em 1790, às vésperas de regressar à Europa, o barão de Wimpffen era enfático em sua opinião sobre São Domingos: "Nesta terra, todos estão nos seus devidos lugares". Ledo engano. Meses depois estourava a revolução, sobre a qual muito se tem escrito nas academias francesas e anglo-saxãs. Quanto às suas origens, não é consenso que a enorme desproporção entre o número de escravos e o de brancos tenha estado na raiz dos acontecimentos. Afinal, na Jamaica de 1768 conviviam 170 mil cativos e apenas 18 mil brancos -isto é, os mesmos 10 por 1 observados em São Domingos pouco antes da insurreição que levou Toussaint L'Ouverture ao poder.
O veio mais fecundo tem sido rastrear a singular combinação desse panorama demográfico com a intensa ligação da ilha ao tráfico atlântico de escravos, a existência de um draconiano código legal ("Code Noir"), que promovia a radical exclusão dos negros, e a profunda cisão que a Revolução Francesa promoveu entre os brancos da colônia. Além disso, muito se tem insistido no poderoso papel do vodu, que aparava as arestas existentes entre as inúmeras etnias de africanos, entre os escravos e os libertos e entre os cativos e os milhares de quilombolas enfurnados nas matas, dando certa unidade às aspirações e práticas dos homens negros em geral.
Curiosa ironia: pesquisas recentes têm descoberto ter sido Toussaint, ele próprio, senhor de alguns escravos.
No que tange aos acontecimentos posteriores à proclamação da independência por Jean-Jacques Dessalines, poucos se assustam com o fato de se ter optado ali por uma economia camponesa, inserida apenas em circuitos mercantis ultralocalizados. Mas muito se tem insistido no brutal isolamento internacional imposto à nova nação, comparável apenas ao que atualmente é feito com Cuba. Era o resultado previsível do pavor verdadeiramente continental -em especial no Brasil- de que se repetissem alhures os inusitados acontecimentos do Haiti.

Mais política que história
Quase todos esses tópicos estão presentes em "Os Jacobinos Negros", a primeira tentativa de fôlego de interpretação marxista da revolução haitiana, escrita em 1938 por Cyril Lionel Robert James (1901-1989). Trata-se de obra mais política do que histórica -é principalmente um libelo contra a discriminação racial e em favor da afirmação do que mais tarde se chamou de ideologia da negritude.
Uma observação final: é simplesmente desconcertante que, entre nós, a tradução de um livro desse porte, cuja importância historiográfica reside sobretudo na força da sua narrativa, tenha ocorrido somente agora, 62 anos depois da primeira edição em inglês.

TRECHO
Toussaint era um homem íntegro. O homem em que havia se transformado pela Revolução Francesa exigia que fosse mantida a relação com a França da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da abolição da escravidão, indiscutivelmente. O significado da França revolucionária estava sempre em seus lábios, em suas declarações públicas, em sua correspondência e na intimidade espontânea de suas conversas particulares. Era o mais alto estádio da existência social que ele podia imaginar. Não era apenas a estrutura de sua mente. Ninguém à sua volta, além dele, tinha tanta consciência da necessidade prática de resolver o problema do atraso social e das primitivas condições de vida. Sendo o homem que era, por natureza e pela extensão e pela intensidade das novas experiências, que são privilégio de poucos, aquela era a maneira pela qual enxergava o mundo em que vivia. Sua atitude irreal para com os antigos senhores, na sua pátria e fora dela, provinha não de um humanitarismo ou de uma lealdade abstrata, mas do reconhecimento de que apenas eles tinham o que a sociedade de São Domingos precisava. Ele acreditava que poderia manipulá-los. (...) Se estava convencido de que São Domingos decairia sem as vantagens da conexão francesa, também estava certo de que a escravidão jamais poderia ser restaurada.
Entre essas duas certezas, (...) tornar-se-ia a personificação do vacilo. Foi a fidelidade à Revolução Francesa e a tudo que ela possibilitou, para a humanidade em geral e para o povo de São Domingos em particular, que o tornou no que ele era. Mas isso acabou por arruiná-lo no final. (...) Mas as observações dos fatos e as conclusões exigidas não devem obscurecer ou diminuir o verdadeiro caráter trágico do seu dilema, que é um dos mais extraordinários entre os registrados pela história.
Trecho de "Os Jacobinos Negros", de C.L.R. James

Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira) e "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).

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