2 de fevereiro de 2010

CILADAS DA DIFERENÇA

CILADAS DA DIFERENÇA
de Antônio Flávio Pierucci.
Editora 34. 22 págs.

EM DEFESA DA HISTÓRIA - MARXISMO E PÓS-MODERNISMO
Org. de Ellen Meiksins Wood e John Bellamy Foster.
Trad. Rui Jungmann.
Jorge Zahar. 218 págs.


resenha


Elogio da Igualdade
Marcelo Coelho

O ser humano não existe: existem ingleses, chineses, americanos.
O americano não existe: existem mulheres americanas, negros americanos, gays americanos. A mulher americana não existe: existem mulheres americanas negras, mulheres americanas gays. A mulher americana negra não existe: existem mulheres americanas negras de classe média, mulheres americanas negras operárias...
Isto não é tudo. As classes sociais também não existem. Há grupos que se redefinem a cada momento, a cada circunstância: motoristas de táxi se dissolvem em corintianos ou palmeirenses, que se dissolvem em adolescentes ou velhos, que se constroem enquanto moradores do Bixiga ou da Lapa.
A Lapa não existe: é uma construção imaginária, uma identidade geográfica criada segundo juízos de valor, experiências subjetivas, jogos de linguagem sedimentados historicamente.
Só que a história não existe tampouco: existem ficções, narrativas que podemos organizar conforme uma estrutura de começo, meio e fim, mas que sempre irão trair a arbitrariedade básica com a qual cada sujeito compõe os dados da realidade. Lembre-se também que o sujeito não existe: é um campo onde se entrecruzam percepções, desejos, linguagens. De resto, a realidade não existe tampouco.
Bobagens como as escritas acima correm o risco, atualmente, de passar como puro senso comum. Com maior ou menor intensidade, volta e meia topamos com raciocínios desse tipo, que correspondem a uma espécie de vulgata pós-moderna. É um grande alívio, nesse quadro de relativismo exacerbado, ler livros como "Ciladas da Diferença" ou "Em Defesa da História". No primeiro, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci desmonta, com clareza e bom humor, os paradoxos a que leva o culto contemporâneo à "identidade" (social, racial, cultural, sexual etc.). A crítica ao "ser humano abstrato", hoje tão disseminada entre a esquerda pós-moderna e os teóricos mais radicais dos movimentos negro e feminista nos Estados Unidos, passa hoje em dia por ser coisa avançada. Nota Pierucci, entretanto, que suas raízes podem ser encontradas no extremo oposto do espectro político.
No século passado, teóricos ultraconservadores como Edmund Burke e Joseph de Maistre, em plena luta contra a idéia de direitos humanos universais, aferravam-se à constatação empírica das "diferenças". De Joseph de Maistre, Pierucci cita uma frase tirada das "Considerações sobre a França": "O homem (universal) não existe. Em minha vida eu vi franceses, italianos, russos etc. (...) Quanto ao homem, contudo, declaro que nunca o encontrei". Mais de cem anos depois, o "elogio da diferença" se torna um tema da "nova esquerda", que, contudo, não pode deixar de lado o tema clássico da igualdade. Pierucci ironiza: "Como se vê, tudo parece muito simples, muito claro: "Os seres humanos são diferentes, mas iguais". Neste jogo de linguagem, tudo se passa inocentemente como se não fosse também um jogo de palavras". É como se a luta contra as várias discriminações, a luta por direitos iguais, estivesse imbricada com outra luta, na qual se procura afirmar a identidade, o valor, a originalidade de um grupo. O que, em si, não encerra nenhuma contradição.
Mas, diz Pierucci, quando o movimento negro, por exemplo, vem afirmar que "negro é diferente", isto será repetir algo que os racistas sempre disseram: "Legitima que a diferença seja enfocada e as distâncias, alargadas... essa atmosfera pós-moderna que muitos de nós hoje respiramos nos ambientes de esquerda, essa onda de celebração neobarroca das diferenças, de apego às singularidades culturais (...), tudo isso assusta muito pouco as cabeças de direita...". O que provoca ojeriza na direita é "ainda hoje, 200 anos depois, o discurso dos direitos humanos, o discurso revolucionário da igualdade". No fundo, o problema dessa e outras "ciladas" talvez seja redutível a um mal-entendido linguístico: só posso defender quem é "diferente" em nome da igualdade; mas a defesa do "diferente" passa a se chamar, num modismo pós-moderno, defesa da "Diferença", com letras maiúsculas... e aí, evidentemente, a igualdade fica falando sozinha.
Com ensaios que tratam desde a mentalidade do eleitor de direita na cidade de São Paulo até as mudanças no feminismo americano, "Ciladas da Diferença" mantém uma admirável unidade de argumentação, que se aproxima bastante da de alguns textos reunidos no livro "Em Defesa da História". O escritor Kenan Malik, por exemplo, em "O Espelho da Raça: O Pós-modernismo e a Louvação da Diferença", nota que "a crítica pós-moderna ao universalismo, longe de formular uma crítica à teoria racial, apropria-se, na verdade, de muitos de seus temas e reproduz os próprios pressupostos sobre os quais, historicamente, assentou-se o racismo". Mas este é apenas um dos temas do volume, que surge como uma impressionante máquina teórica contra os vários cacoetes da teoria pós-moderna. A introdução do volume, escrita por Ellen Meiksins Wood -editora da publicação inglesa de esquerda "The Monthly Review"- aponta de forma demolidora a falta de novidade de temas como "o fim da história", "a fragmentação do sujeito" ou o antiuniversalismo pós-moderno.
A ironia de tudo, diz a autora, é que se insiste na fragmentação e no particularismo num momento em que, como nunca, o capitalismo se tornou uma realidade totalizante num grau sem precedentes. Marxista do começo ao fim, com grande vigor crítico e variedade de enfoques - e, sobretudo, sem nenhum ranço "pré-queda do Muro de Berlim"-, o livro traz ensaios de teóricos conhecidos no Brasil, como Terry Eagleton ("De Onde Vêm os Pós-modernistas?") e Fredric Jameson ("Cinco Teses Sobre o Marxismo Realmente Existente"), nenhum dos dois, a meu ver, no melhor de sua forma. É graças às contribuições de Aijaz Ahmad (sobre cultura nos países "pós-coloniais"), de Bryan Palmer (sobre a pertinência do conceito de classes sociais), de Meera Nanda (contra a "desconstrução" do conhecimento científico) e de Carol Stabile (sobre feminismo) que este volume se faz indispensável. Pelo menos para quem esteja farto do oba-oba pós-moderno.

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