A festa de natal, uma das maiores festas da cristandade, permanece, contudo, um dos fatos historicamente menos conhecidos, inclusive pelos cristãos. Sabe-se que Jesus Cristo não nasceu no dia 25 de Dezembro, e não há documento que indique em que dia, mês ou ano isso teria acontecido. Os Evangelhos não esclarecem muito a respeito. Eles sequer foram escritos à época em que o nascimento teria ocorrido. Suas autorias foram muito posteriores à morte de Jesus Cristo. Calcula-se que, por volta do ano 100, no máximo, os quatro Evangelhos já existiam, mas não eram os únicos. Há notícias de outros dez (ou mais), escritos ao longo do século II, entre eles o de Tomé, de Pedro, dos Hebreus e da Verdade. No final da década de 170, Taciano, o Assírio, reuniu os quatro evangelhos que se tornaram o texto padrão das igrejas cristãs da Síria até o século IV. No século V, porém, houve nova mudança, com supressão e acréscimos de trechos que levaram à definição de um novo “Novo Testamento”. Daí concluir-se que, o Novo Testamento que lemos hoje com a história de Jesus, é um conjunto de livros que alguns bispos cristãos aprovaram e confirmaram mais de trezentos anos depois da morte de Jesus. Os Evangelhos Os quatro Evangelhos valeram-se das tradições orais acerca das palavras e da história de Jesus Cristo, algumas das quais remontavam às memórias daqueles que o conheceram. O evangelho de Marcos é considerado, pelos especialistas, como o mais antigo dos quatro. E, no entanto, ele nada diz sobre o nascimento de Jesus, pois começa contando a história de Jesus com o seu batismo por João Batista. O evangelho de João também é reticente sobre o assunto. Os outros dois evangelhos trazem informações sobre o nascimento. O de Mateus situa o nascimento de Jesus em Belém e o relaciona aos últimos anos do rei Herodes, o Grande. O evangelho de Lucas faz o mesmo mas traz duas informações novas: o recenseamento decretado pelo imperador romano e realizado quando Quirino era governador da Síria. ‘Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo império romano. Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria.” (Lucas, 2: 1-2). Jesus na manjedoura. Iluminura do Deliciarum Hortus de Herrad de Landsberg, séc. XII. Os contemporâneos de Jesus O nascimento de Jesus liga-se, portanto a pessoas e fatos históricos: o imperador César Augusto, o rei Herodes, o governador Quirino e o recenseamento da população do império. Cruzando esses dados pode-se determinar, afinal, quando Jesus Cristo nasceu. Vamos examinar brevemente cada um deles. César Augusto: primeiro imperador de Roma, Caio Otávio César Augusto, governou de 27 aC. a 14 d.C. Portanto, o nascimento e a infância de Jesus coincidem com o reinado de Augusto, como afirma o Evangelho de Lucas. Quirino, governador da Síria: segundo o historiador judaico-romano Flávio Josefo (c.37-c.95), Quirino tornou-se governador da Síria, com autoridade sobre a Judéia, no ano 6 d.C. Não tem como contestar a informação de Josefo, pois foi um fato crucial para a história judaica: naquele ano a Judéia passou a ficar submetida ao controle direto de Roma. Herodes, o Grande: rei da Judéia, Galileia e Samaria de 40 a.C. até sua morte, ocorrida em 4 a.C., ano um pouco antes do eclipse da Lua, datado pelos astrônomos entre 12-13 de março daquele ano. O evangelho de Mateus também informa que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes, o Grande (Mateus 2:1) e, que, devido a ordem do massacre dos inocentes, José, Maria e Jesus fugiram para o Egito onde ficaram até a morte de Herodes (Mateus 2: 15). Temos aqui incoerências nas datações: o evangelho de Lucas presume que Quirino e Herodes tenham sido contemporâneos, quando, na verdade, estavam separados por, no mínimo dez anos. O evangelho de Mateus afirma que a família sagrada ficou no Egito até a morte de Herodes mas, este morreu antes de Jesus nascer. Assim, as informações sobre os governos da época não esclarecem, ao contrário, criam problemas para determinar a data de nascimento de Jesus. O recenseamento José e Maria em Belém para o censo. Mosaico, Igreja Chora, Istambul. O evangelho de Lucas afirma que José junto com Maria, já grávida, viajou de Nazaré (na Galileia) para Belém (na Judeia) para se registrar (Lucas 2:4-5). Este recenseamento é um dos problemas mais difíceis para os estudiosos da Bíblia. Não há qualquer documento informando sobre um recenseamento no tempo de Herodes, o Grande. E mais: é duvidoso que o imperador Augusto tenha emitido um decreto determinando um recenseamento universal, isto é, de todo império romano. Há três grandes recenseamentos bem documentados que foram ordenados por Augusto: em 28 a.C., em 8 a.C. e em 14 d.C. Mas nenhum deles, porém, foi decretado para todo o império. E, ainda, eles se limitavam aos cidadãos romanos e José, sendo judeu, não era cidadão romano. Flávio Josefo informa que na Judéia, sob o governo de Quirino, houve um recenseamento local realizado no ano 6 d.C., quando a província saiu das mãos da família Herodes para o governo direto de Roma. De fato, este foi o primeiro recenseamento de Quirino (como afirma o evangelho de Lucas) mas ocorreu quando Herodes já estava morto havia dez anos. Um dado intrigante nesse episódio, é a presença de Maria acompanhando José ao suposto recenseamento. Não havia necessidade de ela registrar-se junto com o marido. Bastava um dos moradores de cada casa fazer as declarações devidas. Estranha-se o fato de Maria fazer uma viagem desnecessária estando no final de uma gravidez. Outro dado confuso é o fato da Galileia, à diferença da Judeia, permanecia sob um governo independente no ano 6 d.C. e, portanto, não estava sujeita a qualquer censo ou tributo romano. Este fato é confirmado por Josefo, por outros historiadores e pelas moedas correntes na época. Como galileu, José de Nazaré estava isento de ir à Belém para se registrar. A história de Lucas é historicamente impossível e internamente incoerente. O evangelista não estivera presente nos primeiros anos de Jesus, como ele mesmo confessa (Lucas, 1: 1-2); escreveu a partir do que ouvira contar talvez trinta anos ou mais depois da morte de Jesus. A estrela de Belém Reis magos. Mosaico, c.565, Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália. O evangelho de Mateus menciona o aparecimento de uma estrela à época do nascimento de Jesus e que acompanhou os reis magos até o local onde estava o recém-nascido. O que diz a astronomia e os registros históricos a respeito? A “estrela de Belém” citada por Mateus poderia ser um cometa, fenômeno que os antigos observavam com frequência. No outono de 12 a.C., há registros de que um cometa foi visto nos céus de Roma e também na Judeia, o que foi considerado um fato benéfico de indicação dos deuses exaltando o templo de Herodes, recém-concluído. Registros astronômicos chineses também se referem a este cometa. Segundo os astrônomos, o cometa de 12 a.C. era uma aparição grande e brilhante do cometa de Halley, visto pela última vez em 1985-1986. Esse é o único registro de cometa na época. Reis magos Mateus menciona, também, a visita de “magos vindos do Oriente”, guiados pela estrela, e trazendo presentes de ouro, incenso e mirra (Mateus, 2:1-12). Não os identifica como reis, não fornece os seus nomes e sequer diz quantos são. Também não deixa claro quando isso ocorreu, isto é, quanto tempo depois do nascimento de Jesus. Os magos levam presentes ao menino Jesus. Afresco em igreja ortodoxa, Capadócia, Turquia. Segundo a tradição do catolicismo ortodoxo da Síria, foram doze reis magos. Os cristãos chineses afirmam que um sábio chinês também visitou o menino Jesus. Esses exemplos mostram como a tradição ganhou contornos locais. Os nomes dos magos permaneceram desconhecidos até o século VI quando foi descoberto o manuscrito Excerpta Latina Barbari, de Alexandria: eram Melchior, Gaspar e Baltazar. O catolicismo etíope e o armênio, contudo, não concordam com esses nomes e batizaram os magos com outros nomes. Foi somente no século IX, que o catolicismo ocidental associou os reis magos a regiões do mundo antigo: Melchior, rei da Pérsia; Gaspar, rei da Índia; Baltazar, o único negro, rei da Arábia. Enfim, a história de Mateus sobre a estrela de Belém e os reis magos não se confirma historicamente. Possivelmente foi uma maneira de engrandecer o nascimento de Jesus tornando-o a realização das profecias judaicas sobre a vinda de um Messias: “Que os reis de Társis e das regiões litorâneas lhe tragam tributos; os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam presentes. Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações”(Salmo 72, 10-11). “Eu o vejo, mas não agora; eu o avisto, mas não de perto. Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se levantará de Israel (Números, 24:17). Conclusão da origem do natal Foi só em meados do século IV d.C. que os cristãos começaram a celebrar a festa de natal no dia 25 de Dezembro. Naquele século, eles puderam exercer abertamente seus cultos pois o cristianismo fora liberado no império romano (Edito de Milão, em 313) e, depois, oficializado (Edito de Teodósio, em 380). A escolha do dia 25 de Dezembro foi intencional: era uma forma de cristianizar uma festa pagã extremamente popular na época: as Saturnálias, realizadas em homenagem ao deus Saturno. Os cristãos deram um novo significado às comemorações. Contudo, nem todos os cristãos concordaram. Na parte oriental do Império, foi fixado o 6 de Janeiro como data de nascimento de Jesus, dia de outra festa pagã destinada às crianças. Portanto, o Natal foi estabelecido no calendário cristão, não devido a uma certeza, mas por um conflito, uma batalha de festividades travada entre os cristãos e a maioria pagã. Jesus entre os profetas Isaias e Ezequiel, 1308-1311, Galeria Nacional, Londres. Fonte FOX, Robin Lane. Bíblia, verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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